Baixos em profusão
Arnaldo DeSouteiro
(Artigo escrito em 17 de Abril de 2002 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa")
Admiradores do contrabaixo aplicado no idioma jazzístico, alegrai-vos. Vários CDs que agora chegam ao mercado, destacam virtuoses expoentes deste instrumento, considerado o mais antigo membro da família dos violinos. Em grande forma aos 72 anos, Richard Davis mostra-se insuperável em matéria de utilização do arco, barbarizando no emocionante “So in love”. Trinta anos mais jovem, Brian Bromberg reverencia o talento do revolucionário Pastorius no trepidante “Portrait of Jaco”. E o mestre dos mestres, Ron Carter, às vésperas de completar 65, tem quatro discos relançados dentro da série Original Jazz Classics; entre eles, “Carnaval”, um apoteótico encontro com Sadao Watanabe, Hank Jones e Tony Williams captado ao vivo no Japão.
Aulas de arco
Atravessando a melhor fase de sua carreira-solo, Richard Davis, sideman empregado por meio-mundo (de Sinatra a John Lennon, passando por Jobim, Barbra Streisand e Bruce Springsteen), acaba de lançar “So in love” (53m40s), quase tão bom quanto o anterior “Homage to diversity”. Gravado em um único dia – 27 de agosto de 2001 – em New York, co-produzido por Susumu Morikawa para a King Records, repete a colaboração com um dos mais subestimados pianistas do jazz moderno, John Hicks. Tema de abertura, o spiritual “Swing low sweet chariot”, já valeria sozinho o disco, pela sublime execução com arco, fruto da técnica lapidada por Richard como integrante da Filarmônica de New York, bem como durante suas atuações com Igor Strawinsky e Leonard Bernstein.
Davis segue arrasasando ao longo de “Sometimes I feel like a motherless child”, “Wade in the water” e chega ao ápice, em matéria de expressividade, no standard “So in love”, de Cole Porter. Presta tributo a dois saudosos ídolos, Sam Jones (“One for Amos”) e Oscar Pettiford (“The plain and simple truth”), escapa ileso da armadilha melodramática de “Send in the clowns” do sobrevalorizado Stephen Sondheim, e revela os dotes como compositor nas admiráveis “Beautiful shores” e “Josh”. Na última faixa, tira um sarro como cantor em “My little brown book”, do gênio Billy Strayhorn.
Outro craque de técnica fenomenal, Brian Bromberg levou quase seis meses concebendo, em Los Angeles, “Portrait of Jaco “ (52m57s), instigante ode ao iconoclastra Jaco Pastorius (1951-1987), editada via King. Com espantosa criatividade, consegue apresentar ótimas releituras de algumas das mais famosas composições do mago, originalmente apresentadas nos discos de JP como líder ou nos trabalhos com o grupo Weather Report. Brian começa no contrabaixo, acompanhado apenas por uma seção de cordas, em “Portrait of Tracy”, somando baixo elétrico, banda e programação eletrônica na libertária “Continuum”. Outros pontos altos: “Teen town”, “A remark you made”, uma compacta versão de “The chicken” cheia de balanço, e a épica valsa-progressiva “Three views of a secret”, na qual consegue injetar um groove envolvente sem destruir o lirismo da melodia.
Show de bola
Talvez o contrabaixista com maior número de discos em catálogo atualmente, Ronald Levin Carter tem mais quatro álbuns recolocados no mercado, todos através da série Original Jazz Classics, da Fantasy Records. “Pastels” (37m18s), que marcou sua estréia no selo Milestone em 76, depois da gloriosa fase na CTI, já havia sido relançado em CD, mas a primeira tiragem logo se esgotou. Nesta remasterização, felizmente conseguiram “desentupir” o som do disco, abafado por excesso de médio-grave na edição original. A qualidade do cardápio oscila entre o corriqueiro “Woolaphant” - de sabor country & western reforçado pela atuação de Hugh McCracken, que se desdobra na guitarra e na gaita – e a pungente faixa-título, na qual Hugh passa para o violão.
Nada porém se compara à inenarrável “Ballad”, peça para contrabaixo e orquestra de cordas, num arranjo magistral de Don Sebesky. Ron faz tudo o que o maior dos virtuoses poderia fazer, sem apelar para exibicionismos gratuitos, embora os críticos invejosos, guardiões da mediocridade, volta e meia digam o contrário, agredidos por tamanho talento. Dois temas bem mais simples completam o disco: “One bass rag”, marcada pelo saltitante piano de Kenny Barron em lépidas alusões ao estilo citado no título, e “12+12”, que tem, como único atrativo, o solo do líder no baixo-piccolo, sobre a pulsação infalível do batera Harvey Mason, outra fera que humilha os medíocres com sua versatilidade.
Já no CD “Third plane” (39m45s), Carter aparece junto a Herbie Hancock (piano) e Tony Williams (bateria) numa sessão documentada em 13 de julho de 77. Naquela época, os mancebos formavam a base do super-quinteto VSOP, complementado por Freddie Hubbard e Wayne Shorter. Sem os sopros, atuam de forma igualmente incendiária, estraçalhando em “Stella by starlight” (clássico de Victor Young), “Dolphin dance” (uma das obras-primas de Hancock) e “Lawra”, tema de Williams que fazia parte de todos os shows do VSOP. Ron assina “Quiet times”, “United blues” e o excelente “Third plane”, de nítida influência brasileira, mais tarde escancarada na regravação feita com Edson Machado para o LP “Patrão”.
Outro timaço assessora o baixista em “Parade” (36m19s), de março de 79. Ninguém menos que o pianista Chick Corea (raramente recrutado por Carter, e vice-versa), Joe Henderson no sax tenor, e novamente Williams na bateria. Em todas as faixas, exceto “Gypsy”, o quarteto recebe o reforço de uma seção de sopros comandada por Wade Marcus, que acrescentou suas orquestrações às bases previamente elaboradas por Ron. O resultado é apenas eficiente, apesar do naipe ser formado por músicos do quilate de Urbie Green, Frank Wess e Jerry Dodgion. Mas nenhum deles tem espaço para solos. Além disso, Marcus, arranjador de quinta categoria, peca por pouca sutileza e mínima dose de originalidade. Ainda assim, não chega a estragar o disco, porque pelo menos não atrapalha os irretocáveis improvisos da turma principal em faixas como “Tinderbox” e “A theme in ¾”.
Até então disputado em sebos, o álbum “Carnaval” (43m19s) finalmente ressurge em CD. Gravado para o selo Galaxy em 30 de julho de 78, durante show ao ar livre no Denen Coliseum, de Tokyo, reune Carter, Williams, Hank Jones e Sadao Watanabe. Estimulado pela execução explosiva da base, o saxofonista japonês nem parece o mesmo músico que costuma desperdiçar seu talento em melosos discos de pseudo-fusion. Em estado de graça, realiza uma das melhores performances da sua vida, sob a cartilha de seu primeiro ídolo, Charlie Parker, desembestando em furiosos solos no decorrer de “Confirmation” e “Moose the mooche”, dois hinos do be-bop. A platéia vai ao delírio também na balada “Chelsea bridge”, de Strayhorn, e especialmente na crepitante recriação de “Manhã de carnaval”, de Bonfá, na qual Williams faz misérias. Será que não pinta um DVD?
Legendas:
“Richard Davis exibe sua classe em duos com John Hicks”
“Um quarteto infernal em show antológico no Japão”
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