Monday, May 14, 2007

Na onda dos "chill out grooves"




Na onda dos “chill out grooves”
Arnaldo DeSouteiro


(artigo escrito em 8 de Maio de 2002 e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa")

Abomináveis quando fabricadas a toque de caixa, de forma oportunista e descuidada por produtores inconsequentes, as coletâneas têm um público fiel até mesmo na área do jazz, cujos consumidores têm a fama de mais exigentes. Apostando neste rentável filão de baixíssimo custo, as gravadoras aproveitam a desculpa da crise para reembalar faixas que adormeciam em seus arquivos, conceitualizando-as de forma a reforçar o apelo comercial dos produtos. Três lançamentos recentes (“The master collection”, “Totally guitar” e “After midnight”) enfocam diferentes fases do selo CTI. Mas o grande destaque desta safra é o luxuoso CD-duplo “The morning side of love”, impecável seleção do selo Irma reunindo temas que inspiraram toda a onda dos “chill out grooves”.

Sons refrescantes

Começando logo pelo melhor, impossível não suspirar diante das vinte e sete faixas listadas na contracapa da caixa “The morning side of love”, cujo longo subtítulo “A collection of chill out grooves from the past” explica quase tudo. Para quem não está atualizado com a terminologia musical, vale esclarecer que são chamadas de “chill out” as salas anexas às principais pistas de dança nos bons clubes do ramo. Nas famosas “raves”, motivo de escândalo entre os fiscais da burguesia hipócrita, a rapaziada costuma descansar, ou melhor, repor as energias nas tais salas, onde rola um som mais calmo, mais “cool”, cheio de balanço mas jamais frenético. Enquanto devoram litros de água mineral para reabastecer o organismo combalido pelo uso do “ecstasy”, meninos e meninas de vários sexos curtem Paul Desmond, Don Ellis, Gary McFarland e outros mestres.

O clima chique deste CD-duplo começa pela capa – um belo quadro do pintor italiano Giambattista Damiani (1921-1986). Seu filho, o produtor Umbi, fez a seleção musical com a sabedoria de quem atua há duas décadas no mercado de “dancefloor jazz”. Um terreno vasto e variado, sem lugar para preconceitos estéticos. Onde o trompete cortante de Don Ellis (“Parting”) e o aveludado tenor de Stan Getz (“Keep dreaming”) convivem harmoniosamente com a voz de outra saudosa figura, Minnie Riperton (“Les fleurs”). Também não há conflito entre o “mainstream” de Paul Desmond (com seu sax-alto, de sonoridade “dry martini” conforme definição do próprio, flutuando sobre a levada 10/8 de Jack DeJohnette em “Take ten”) e a refinada “soul-music” da Love Unlimited Orchestra comandada por Barry White (“Midnight groove”).

“What’s going on” aparece numa interessante versão ralentada a cargo do flautista Herbie Mann, precedendo a classuda bossa-funk de Michael Franks, “When the cookie jar is empty”, sutilmente orquestrada por Eumir Deodato, destacando os floreios do guitarrista John Tropea. E por falar em guitarra, vários expoentes do instrumento exibem seus diferentes estilos: Pat Metheny (“Are you going with me”), Santana (“Aqua marine”), o fantástico húngao Gabor Szabo fazendo dupla com o vibrafonista Gary McFarland (“Simpatico”) e até o violonista Charlie Byrd relendo o bolero “It’s impossible”.

Apaixonado por trilhas sonoras, Umbi escolheu vários temas de filmes. Das gravações originais de “Last tango in Paris” (Gato Barbieri) e “Dio come ti amo” (Domenico Modugno) às reinvenções de “Blow up” pelo vibrafonista Bobby Hutcherson e “Over the rainbow” pelo trompetista canadense Maynard Ferguson, passando por irretocável gravação de, pasmem!, Franck Pourcel para “You only live twice”, uma das obras-primas de John Barry. Convém ainda destacar as faixas de Gary Burton (incendiando “Las Vegas tango”, de Gil Evans), Yusef Lateef (soltando fumaça pela flauta em “Eboness”), Alice Coltrane (barbarizando na harpa em “Blue Nile”) e o grupo de r&b The Isley Brothers eternizando o sucesso pop “Summer breeze”.

Baú da CTI

Aproveitando a grande repercussão – com direito a matéria de capa em edição dominical do New York Times – da recente série de relançamentos da CTI Records, já comentada neste espaço, a distribuidora Sony rapidamente exportou para os quatro cantos do mundo uma compilação a princípio destinada somente ao mercado inglês. Organizada por Peter Young, renomado DJ cujo programa “Soul cellar” é transmitido pela BBC de Londres, captado até via internet através do site www.bbc.co.uk/london, traz um título curto e eficiente: “The master collection”, cobrindo as produções de Creed Taylor no período 1970-79. Abre, claro, com o maior sucesso da história da CTI, “Also sprach Zarathustra”, antológica adaptação de Eumir Deodato para o tema usado por Kubrick no filme “2001”.

O músico carioca, que até hoje não realizou um único show na cidade onde nasceu, leva ao delírio a platéia presente a seu primeiro concerto no Madison Square Garden, em 73, com “Do it again”, aprimorando harmonicamente o hit do Steely Dan. Marca presença também como arranjador e pianista das faixas “Ponteio”, entoada por Astrud Gilberto com canja do gaitista Toots Thielemans, e “Gibraltar”, conduzida pelo tenorista Stanley Turrentine. Há doses duplas de Milt Jackson (“People make the world go round”, “Sunflower”) e George Benson (“California dreaming”, “My latin brother”), Paul Desmond flanando sobre a bossa “Wave”, e o argentino Lalo Schifrin transmutando em disco-music o tema de John Williams para “Tubarão”.

Em matéria de trompete, Freddie Hubbard mostra-se no auge da forma (“Sky dive”, com Keith Jarrett no piano elétrico) e Chet Baker surge revitalizado (“Funk in deep freeze”, impulsionado por Steve Gadd na bateria), ambos agraciados com o talento do arranjador Don Sebesky. Na área do blues, pontificam Johnny Hammond (”Blues selah”) e Hank Crawford (“Mr. Blues”), enquanto as faixas vocais ficam a cargo da inconfundível estilista Esther Phillips (“Home is where the hatred is”) e da esforçada Patti Austin, soltando seu vozeirão na melosa balada “We’re in love”. Completando o cardápio, o congueiro Ray Barretto arma um baile de responsa com “La cuna”, assessorado por outra figura mítica do latin-jazz, o timbaleiro-mor Tito Puente.

Outro CD-duplo, “After midnight – jazz ballads”, limita-se ao período 1989-1998 da CTI, com algumas incursões (de Donald Harrison, Steve Laury e Ted Rosenthal) pelo perigoso terreno do xaroposo smooth-jazz. Mas há grandes momentos de Jim Hall (“Django” e principalmente “All across the city”, em soberbos arranjos de Jim Pugh), o bem montado “encontro” de Larry Coryell & Wes Montgomery em “Angel on sunset”, a comovente interpretação de Flora Purim para “Waiting for Angela” de Toninho Horta, e duas das menos piores faixas (“A raça humana”, “From Japan”) do patético encontro de Ernie Watts & Gilberto Gil no deplorável álbum “Afoxé”. Vale citar ainda o balanço brasileiro adicionado por Bill O’Connell ao hit “Good enough”, de Anita Baker, além do esforço de Duke Jones & Kenny Garrett para injetar substância a “No ordinary love”, de Sade.

Igualmente irregular, “Totally guitar – jazz moods” também abriga razoáveis releituras de sucessos pop como “For the love of you” (dos Isley Brothers) nas mãos de Larry Coryell, e “I’ll be there” (Jackson Five) com Steve Laury. Nesta linha, o melhor resultado é obtido por Coryell trocando a guitarra pelo violão Ramirez em “Try a little tenderness”, antes de voltar à Gibson na longa jam de “Vera Cruz” (Milton Nascimento), apoiado por Billy Cobham, Nico Assumpção, Luiz Avellar e Romero Lubambo. O veterano Jim Hall surpreende no arranjo fusion para “Youkali” (Kurt Weill), abrindo espaço para solos de dois outros guitarristas: Chuck Loeb e Ira Siegel. Rainer Falk comparece com quatro inexpressivas composições, destoando de jóias do quilate de “You must believe in spring” (Legrand) e “O grande amor” (Jobim), buriladas pelo excepcional Jack Wilkins, que rouba o disco. Afinal, craque é craque.

Legendas:
“Franck Pourcel, Santana, Minnie Riperton e Stan Getz convivem na viagem sonora pelo mundo dos chill out grooves” (capa do CD “The morning side of love”)
“Jim Hall, Flora Purim, Larry Coryell e Gilberto Gil marcam presença nesta coletânea de baladas” (capa do CD “After midnight”)

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