Convivi com alguns gênios. Um dos mais geniais e generosos foi Luiz Bonfá. Um dos maiores compositores e violonistas do mundo, com músicas gravadas por Tony Bennett, Frank Sinatra, Elvis Presley, Luciano Pavarotti, John McLaughlin, Quincy Jones, George Benson e centenas de outros. Visionário que antecipou e depois transcendeu a bossa nova. Adorado por João Gilberto, que lhe dedicou o tema “Um Abraço No Bonfá”. Autor de trilhas sonoras históricas como “Black Orpheus” (filme que apresentou o Brasil e nossa música a nove entre dez estrangeiros que se apaixonaram pelo país nos anos 1950 e 1960) e “The Gentle Rain”.
Carioca nascido em Santa Cruz, flanou pelo jet set internacional, tornando-se amigo de Mary Martin (com quem trabalhou logo ao chegar nos EUA em 1957), Ava Gardner, Catherine Deneuve e Karen Black. Primeiro brasileiro a gravar com Stan Getz e a ser contratado pela Verve Records. Sampleado por feras do hip-hop, em seus mais de cinquenta discos gravou com Ron Carter, Stanley Clarke, Eumir Deodato, Idris Muhammad, Airto Moreira, Ray Barretto, Gene Bertoncini, Dom Salvador, Helcio Milito, Dom Um Romão, Bobby Scott, Naná Vasconcelos, Edison Machado e muitos mais. Proezas e mais proezas.
Pois bem. Comecei a conhecer a obra de Bonfá aos 10 anos de idade, em 1973, quando ouvi “Jacarandá” na Rádio JB-AM. Quando minha tia Elge me deu de presente o disco, lançado naquele ano pela Som Livre, fiquei fascinado. Hoje entendo plenamente o motivo. Afinal, segundo o historiador Thom Jurek, do site All Music Guide, trata-se do melhor álbum de “fusion” já gravado! Dois anos depois, encontrei Bonfá pessoalmente. Aos poucos fomos ficando mais próximos. No final da minha adolescência, já estávamos amigos.
Graças a Bonfá consegui trabalhos importantes, inclusive na Rádio Tupi FM, onde ele me apresentou a outra figura saudosa, o cantor lírico Renato Rocha, chefe de programação da emissora. Por tabela, ganhei meu próprio programa de jazz na Tupi, fiz a “música ambiente” do edifício-sede da Petrobrás e a programação de bordo da Varig.
Em 1984, ousei convida-lo para participar de um disco da cantora Yana Purim que eu estava produzindo. Bonfá aceitou e arrasou. No ano seguinte, levei George Benson (no Brasil para se apresentar no primeiro Rock in Rio) para um almoço na casa de Bonfá. Passaram a tarde toda tocando juntos, numa jam inacreditável. Como observou o guitarrista Gene Bertoncini: “Impressiona como Bonfá nunca utilizou gratuitamente seu virtuosismo. Ele tinha técnica de sobra para fazer solos velozes, mas preferia a expressividade do fraseado ao invés de partir para malabarismos ou perder-se em divagações”.
Depois que me mudei para a Barra da Tijuca – bairro onde Bonfá morou até o final da vida, em uma bela casa na Estrada Sorimã –, nossa amizade cresceu ainda mais. Foram treze anos de intenso convívio. Nos encontrávamos pelo menos duas vezes por semana. Bonfá, que tinha o hobby de colecionar carros antigos, gostava de mostrar a mim e a João Gilberto os reparos nos automóveis. Almoçávamos no Barra Shopping e depois Bonfá ia na minha casa para ouvir novas gravações de músicas dele. Lembro de como ficou particularmente emocionado ao ver um LaserDisc no qual John McLaughlin, Larry Coryell e Paco de Lucia tocavam, juntos, sua “Manhã de Carnaval”.
Até hoje guardo as fitas-cassete com as mensagens que ele deixava na minha secretária eletrônica. Um dia, em 1990, uma grande surpresa. Bonfá me convidou para produzir um disco que viria a ter o nome de “The Bonfá Magic”. Lançado mundialmente, despertou uma nova onda de interesse por sua obra. Todas as sessões de gravação realizadas no Rio – ao vivo no estúdio com os músicos Jota Moraes, Nilson Matta e Pascoal Meirelles – foram filmadas pelo cineasta Alberto Flaksman, a nós recomendado pela atriz Marcia Rodrigues, visando edição no formato LaserDisc no mercado japonês. Material preciosíssimo nunca lançado, devido a um desentendimento entre Flaksman e o produtor executivo Peter Klam.
Voltamos a gravar juntos várias vezes, inclusive quando concebi o álbum “Almost In Love – Ithamara Koorax Sings The Luiz Bonfá Songbook”, um best-seller no Japão, e primeiro disco lançado no Brasil pela internet, nos idos de 1995, com apoio do Jornal do Brasil.
Aliás, fomos juntos, várias vezes, à Rádio JB (Av. Brasil 500), onde Bonfá concedeu entrevistas memoráveis a Luiz Carlos Saroldi e Mauricio Figueiredo. Chegávamos de surpresa, tarde da noite, e aquilo gerava um corre-corre danado nos estúdios da emissora. Quando eu trabalhava na TV Manchete, Bonfá gravou para o programa de Arthur Moreira Lima, “Um Toque de Classe”. Como cereja do bolo, Octávio Terceiro garantiu a presença de Milton Banana no acompanhamento em uma das músicas, “Uma Prece”.
Outra lembrança inesquecível: a tarde em que ele e João Donato (então meu vizinho de prédio) tocaram juntos por duas horas no apartamento de Donato, sem trocar uma palavra. Donato gravou tudo num cassete. No embalo, apresentei Bonfá ao roqueiro Lord K e eles fizeram três músicas. Para contrabalançar, Bonfá me apresentou a Carlos Barbosa-Lima e a Gaudencio Thiago de Mello. Na casa de Bonfá conheci também Cyll Farney, Bororó, Rubem Braga, Haroldo Costa e Emilio Santiago, além dos vizinhos Rubens Gerchman (que fez a primeira capa de “The Bonfá Magic”, por nós recusada) e Tunga.
Promovi seus primeiros encontros com McCoy Tyner (um jantar na minha casa, depois de Tyner homenagea-lo em seu show no Free Jazz Festival, em 1985), Sadao Watanabe, Larry Coryell e John McLaughlin, que o idolatravam. Acabou gravando com os três últimos, em discos de Ithamara Koorax. Sadao, ao encontra-lo no estúdio, se ajoelhou e disse: “I adore you for years!”. Fomos ao Metropolitan assistir a um show de Stanley Clarke, seu baixista no álbum “Jacarandá”, que remasterizamos juntos.
Aliás, quando Marcelo D2 sampleou “Jacarandá” na música “Se Liga”, no disco “Os Cães Ladram Mas A Caravana Não Pára” do Planet Hemp, Bonfá chegou na minha casa preocupado, com a proposta enviada pela Sony Music. “Devo assinar ou vão achar que sou maconheiro?”, perguntou o mestre, que não bebia nem fumava. Aconselhei-o a dar a autorização.
Volta e meia aparecia em shows de Ithamara Koorax e dava canjas que levavam o público ao delírio, como aconteceu no Teatro Rival, na Sala Funarte e no BNDES. Presenteei amigos com essas imagens (filmadas entre 1994 e 1998), que foram postadas no YouTube e logo retiradas pelos herdeiros.
Após a morte de Bonfá em Janeiro de 2001, produzi, para a BMG, as reedições oficiais em CD de discos antológicos como “Introspection” (considerado um dos melhores discos de violão-solo na história da música) e “The New Face of Bonfá”. Em todas as compilações produzidas por mim, para selos como Verve e Milestone, nunca deixei de incluir músicas compostas ou gravadas por Bonfá.
Luiz Floriano Bonfá era um homem de muita sorte. Tanto que, na primeira festa a que compareceu em NY, em 1957, na casa do joalheiro Julius Glanzer – onde foi ouvido por Arthur Rubinstein, Yul Bryner, Bob Wagner e Natalie Wood, sob o testemunho de Zezinho Gueiros – terminou a noite com duas propostas de contrato. Uma do poderoso fundador da Atlantic, Neshui Ertegun, para imediatamente entrar em estúdio e gravar seu primeiro LP nos EUA, o instigante “Amor!”. Outra da cantora e atriz Mary Martin, para atuar como “special guest” numa longa turnê coast-to-coast que começaria dali a duas semanas. Ao término da excursão, em meados de 1958, Bonfá veio descansar no Rio e, por total acaso, acabou se transformando em peça-chave para o sucesso extraordinário de “Black Orpheus”.
O diretor Marcel Camus já estava quase encerrando as filmagens, mas permanecia insatisfeito com a trilha de Tom Jobim & Vinicius de Moraes originalmente preparada, em 1956, para a peça “Orfeu da Conceição”. Solicitou a Bonfá que escrevesse um novo “score”. Nosso herói argumentou que não teria tempo para compor a trilha inteira porque precisava retornar a NY. Camus tanto implorou que acabou convencendo Bonfá a lhe entregar duas músicas inéditas: “Manhã de Carnaval” e “Samba de Orfeu”, cujas letras inicialmente encomendadas ao amigo Rubem Braga – “arrume outro porque sou poeta, não tenho vocação para letrista de música” teria dito Rubem – acabaram nas mãos de outro craque, Antonio Maria.
O resultado todo mundo, no mundo todo, sabe. Tanto o filme como a trilha obtiveram estrondoso sucesso, faturando a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1959 - com a ajuda indiscutível das duas canções de Bonfá, que viraram standards instantaneamente, antecipando o estouro da bossa-nova. Durante o famoso concerto no Carnegie Hall, em 1962, Bonfá foi o único artista ovacionado e obrigado a bisar pela platéia. E não poderia ter sido diferente: apesar das presenças de nomes como Tom Jobim, João Gilberto e Sergio Mendes, a única música até então conhecida pelos americanos era “Manhã de Carnaval”. No dia seguinte, foi convidado a assinar com a Verve, então dirigida por Creed Taylor, que assistira ao concerto e viria a produzir os até hoje constantemente relançados “The Composer of Black Orpheus Plays and Sings Bossa Nova” (com arranjos de Lalo Schifrin) e “Jazz Samba Encore!” (ao lado de Stan Getz).
Na seqüência, Bonfá gravou para os selos Philips, Fontana, London e Mercury. Em 1967, um fenômeno: apesar do retumbante fracasso comercial do filme “The Gentle Rain”, a trilha sonora composta por Bonfá, e gravada (mas nunca lançada) no Brasil com orquestrações de um jovem de 25 anos chamado Eumir Deodato, alcançou enorme sucesso. O LP virou objeto de culto entre os jazzmen americanos, que não demoraram a transformar a canção-título em “jazz standard”, contabilizando centenas de gravações – inclusive por Tony Bennett, responsável pela definitiva popularização da música. Outro tema da trilha, “Non-Stop to Brazil”, também virou hit, na voz de Astrud Gilberto.
Quando Bonfá recebeu irrecusável proposta para assinar com a Dot Records, subsidiária da Paramount, em 1968, exigiu levar um arranjador brasileiro para trabalhar nos discos. Bonfá contava que ficara em dúvida entre Luiz Eça, já famoso e muito ocupado com o Tamba, e Deodato, que o deixara muito bem impressionado não apenas durante a gravação de “The Gentle Rain” mas também no arranjo, em 1966, para “Dia das Rosas” (canção de Bonfá e sua talentosíssima esposa Maria Helena Toledo, grande cantor e compositora), finalista no I Festival Internacional da Canção (FIC), na voz de Maysa. Foi uma boa fase para Luiz, e melhor ainda para Eumir, logo apresentado à Creed Taylor, que o chamou para trabalhar com Astrud, Wes Montgomery e muitos outros, numa associação que mais tarde renderia, em 1973, cinco milhões de discos vendidos de “Also Sprach Zarathustra/2001”.
Durante o período na Dot, Bonfá ampliou sua popularidade como intérprete, gravando quatro discos que misturavam composições próprias com sucessos pop da época, de autores tipo Paul Simon (“Mrs. Robinson”) e Burt Bacharach (“Do You Know Then Way to San Jose?”). Sempre generoso, dava um jeito de encaixar temas inéditos de amigos como Pingarilho & Marcos Vasconcellos (“Afternoon’s Wind”). Eumir fez todos os arranjos para os dois primeiros discos na Dot. Nos dois últimos, dividiu a tarefa com Nick Perito (o favorito de Perry Como) e Arnold Goland (maestro de Shirley Bassey). A parceria Bonfá-Deodato rendeu ainda um disco-solo de Maria Toledo (“Sings the Best of Luiz Bonfá”, para a United Artists) e outro com a dupla Steve Lawrence & Eydie Gormé (“Steve & Eydie, Bonfá & Brazil”, para a Columbia).
Ao assinar com a RCA, entretanto, Bonfá fez diferentes exigências contratuais: poderia escolher não apenas os arranjadores, como também os produtores. Mais: gravaria somente composições próprias. Tudo acertado, surpreendeu os diretores da companhia ao comunicar que embarcaria para gravar, no Brasil, as bases do disco de estréia na nova companhia. “Para que gravar na selva, se os melhores estúdios e músicos estão à disposição nos EUA?”, perguntava-se, atarantado, o diretor artístico Chet Atkins. Porque Bonfá andava em busca de novas sonoridades, queria trabalhar sobre outros ritmos brasileiros além da bossa-nova. E assim, cheio de gás, rumou para o Rio de Janeiro em março de 1970. Como a RCA estava sem estúdio no Rio naquela época (“os estúdios antigos, lá perto da Central do Brasil, haviam sido desativados, e os da Barata Ribeiro só começariam a funcionar em 74”, relembra Luigi Hoffer), precisou alugar o Áudio Studio B, de um velho amigo, o músico Bill Horne, craque do mellophone.
“Eu conhecera o Bonfá em 62, porque tive o privilégio de assistir ao concerto de bossa nova no Carnegie Hall”, revelou Bill. “Depois voltamos a nos encontrar em NY uns dois anos mais tarde, quando fui assistir um show dele com a Maria Helena no Village Gate. Viramos a noite conversando numa pizzaria lá no Greenwich Village, porque o Luiz era bom de papo”. Em 1970, Bill possuía um um dos poucos estúdios no Rio a contar com uma mesa de quatro canais. Ficava na Rua Anita Garibaldi, em Copacabana, onde Bonfá desembarcou cheio de idéias, com dezenas de temas inéditos. “Ele me avisou que pretendia levar a fita de meia-polegada para New York, onde iria fazer as complementações no estúdio de oito canais da RCA americana”, detalhou Bill Horn. “Era uma atitude ousada, não lembro de ninguém que tivesse feito algo semelhante naquela época”. Nascia, assim, “The New Face Of Bonfá”, seguido por “Sanctuary”, “Introspection”, “Jacarandá” e “Manhattan Strut”.
Em 1974, após dividir o palco com os pianistas Dave Brubeck & Ramsey Lewis num concerto em Washington, Luiz decidiu diminuir o ritmo de trabalho. Optou por passar a maior parte do tempo no Brasil, viajando aos EUA apenas uma vez por ano, para não perder o green-card. Excursionou pela Europa em 1976, pela Austrália em 1978 ao lado de Don Burrows, fez temporada sold-out no clube de jazz Fat Tuesday’s em 1987 (adivinhem quem fez o roteiro?), compôs a trilha para o filme “Prisoner of Rio” (sobre a vida de Ronald Biggs) em 1989, gravou com Toots Thielemans em 1992, armou a inusitada parceria com Lord K em 1993, passou a trabalhar com Ithamara Koorax a partir do ano seguinte, e retomou a colaboração com Dom Um Romão em 1998.
Foi sampleado não apenas pelo Planet Hemp como também pelo Smoke City (com “Bahia Soul” transmutada em “Underwater Love”), e por dezenas de artistas da geração hip-hop. Inclusive novamente por Marcelo D2 (o balanço arrepiante de “Bonfá Nova” serviu como base para “À Procura da Batida Perfeita”), Gotye (quando “Seville” virou “Somebody That I Used To Know”) e pelo lendário J. Dilla (com “Saudade Vem Correndo” transformada no mega-sucesso “Runnin’” via The Pharcyde). Esta última se tornou um clássico do hip-hop e foi incluída em várias trilhas de filmes.
Por essas e outras, o mundo irá eternamente reverenciar o seu talento.
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