Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 13 de Fevereiro de 2001 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
Diferentes bailes de outros carnavais
Arnaldo DeSouteiro
Quem não suporta desfile de escola de samba, concurso de fantasia nem transmissão do Vermelho e Preto, sempre começa a pensar em como fugir de todo esse suplício do período momesco. A melhor opção é sempre viajar. Mas também pode-se pensar numa viagem interna, numa reclusão, que não precisa ser chata e sem graça. Com imaginação e bons discos, se possível com boa companhia, é possível armar um outro tipo de baile e um outro tipo de carnaval. Como munição sonora, alguns dos CDs desta nova safra de lançamentos, recheados de bossa, funk, fusion, balanços latinos e...jazz!
Figurinha cult
Venerado na cena acid-jazz européia, ilustre desconhecido no Brasil, o vibrafonista Dave Pike, às vésperas de completar 63 anos, atravessa uma das melhores fases de sua carreira. Além de constantes turnês (lotou recentemente o clube Jazz Café, em Londres, com um show eletrizante) e novos discos, tem antigos trabalhos reeditados em CD. Agora mesmo o selo Prestige vem de lançar, reunidos integralmente em um único CD batizado de “Carnavals” (78m06s), dois álbuns originalmente gravados em 1962 para a hoje extinta gravadora New Jazz.
A redescoberta das fitas matrizes (dadas como perdidas) contendo as faixas do LP “Bossa nova carnival” aconteceu em 98, quando um obsessivo colaborador deste ilustre caderno teimou em incluir a música “Carnival samba” na coletânea “Brazilian horizons vol.2”. Remasterizadas por Kirk Felton, esta e as demais sete faixas podem ser contempladas com a merecida atenção, revelando algumas das menos conhecidas composições de João Donato, em sua maioria nunca regravadas. São os casos de “Sono”, “Serenidade”, “Philumba”, “Ginha” e “Melvalita”.
“Sausalito” viria a ficar conhecida pela gravação de Donato com Bud Shank e Rosinha de Valença realizada para um dos melhores títulos do selo Elenco. E “Sambolero” – não confundir com o tema homônimo de Luiz Bonfá, dos anos 50 – seria reinventada no disco “A bossa muito moderna de Donato e seu trio”, gravado em 63 para a Polydor. Curiosamente, apesar de assinar todos os temas, João não participou da gravação de seu primeiro songbook, permancendo em Los Angeles enquanto Dave gravava em New York. O que levou Pike a uma decisão sábia: se Donato não podia gravar, então ele não convocaria nenhum outro pianista!
E assim aconteceu nas sessões em 6 & 7 de setembro de 62, com a base rítmica – formada pelo baixista Chris White e pelo batera Rudy Collins, ambos integrantes do grupo de Dizzy Gillespie – suando para encontrar a batida certa da bossa nova. Sem sucesso, com a participação do percussionista brasileiro José Paulo (colega de Pike no sexteto de Herbie Mann) tocando cabaça e pandeiro (chamado de bandero no livreto do CD) de um modo muito, digamos, engraçado. Hoje, esta batida de bossa-rumba (ou seria rumbossa?) soa exótica, mas só não afundou o disco porque ali estavam também os improvisos primorosos de Dave, que troca o vibrafone pela marimba em “Philumba” e “Melvalita”.
Sem falar dos solos igualmente notáveis do guitarrista Kenny Burrell, sempre usando o mínimo de amplificação, e do lendário Clark Terry, arrasador no flugelhorn em “Sono”, “Carnival samba” e “Ginha”. Aliás, a idéia do disco surgiu depois de uma noitada no célebre clube de jazz Minton’s, no Harlem, quando Pike e Donato deram uma canja numa gig de Burrell. E “Sambolero” traz a assinatura de uma misteriosa Madrid como co-autora, que não é outra senão a cantora Carmen Costa, então morando na Califórnia e volta e meia fazendo gravações como ritmista...
No fogo de seus 24 anos, Dave Pike voltou ao estúdio três meses depois, registrando, numa única sessão em 12 de dezembro de 62, as nove faixas do LP “Limbo carnival”. Estimulado por outra turma (Ahmed Abdul Malik e George Duvivier revezando no contrabaixo, William Correo – da banda de Tito Puente – na bateria, e o mestre Ray Barretto nas congas), conseguiu dar vida nova a temas manjados como “La bamba” (numa versão cheia de swing e nem um pouco brega), “Matilda” (destacando Leo Wright na flauta e o saudoso Jimmy Raney na guitarra) e até “Jamaica farewell”, outro sucesso de Harry Belafonte.
Tommy Flanagan participa de cinco faixas, roubando a cena na latinizada versão para “My little suede shoes”, gravada (e assinada) por Charlie Parker em 51. Na proporção inversa, Tommy e Dave jazzificam ainda mais o “Mambo bounce”, documentado naquele mesmo ano por Sonny Rollins. “Cattin’ latin”, de Pony Poindexter, rola num fluente 4/4, enquanto “Calypso blues”, do book de Nat King Cole, transcorre em misterioso clima.
Do jazz ao funk
De Donato para Deodato, via Kleeer. Um dos melhores grupos de funk-music nos anos 80, o quarteto (então formado por Norman Durham, Richard Lee, Paul Crutchfield & Woody Cunningham) teve sua fase de maior popularidade quando passou a contar com a produção de Eumir Deodato. Na verdade, em “Intimate connection” (40m05s), gravado e mixado em 84 no estúdio Duplex Sound do próprio Eumir, o patrício encarregou-se também dos arranjos, das programações de bateria eletrônica, regeu o naipe de metais, tocou piano elétrico Rhodes, sintetizador Oberheim e ainda fez um solo de vocoder na faixa “Break”.
Tem mais: recém-liberado da parceria com o Kool & The Gang, escreveu o tema “Do you want to?”, um dos pontos altos ao lado de “Go for it”, “Next time it’s for real” e da deliciosa balada “You did it again”, sob medida para bailes charm. Reeditado pela Atlantic no Japão, disponível nos EUA via Dusty Groove, traz a capa original e livreto com todas as letras, ajudando a relembrar os inspirados versos da faixa-título “Intimate connection”, cujo single chegou ao Top 50 da parada de rhythm & blues da Billboard.
Igualmente informativo, o texto que acompanha a coletânea “The very best of Kleeer” (78m05s) vem assinado pelo expert Mark Matlock, autor do livro “Black music underground”. São 13 faixas, cobrindo o período 79-85 na Atlantic. Entre as curiosidades: Luther Vandross participando do coro em “Tonight’s the night”, Rick James tocando teclados em “She said she loves me”, Michael Brecker fazendo o solo de sax tenor em “Open your mind”, o clarinetista Eddie Daniels tocando sax alto em “Keep your body workin’”, e o argentino Carlos Franzetti adicionando cordas & metais nos temas extraídos dos discos “Winners” e “License to dream”. Mas a última faixa,”Take your heart away” (hit do LP “Seeekret”), acaba sendo a melhor, graças ao toque mágico de Eumir.
Deodato também se faz presente no quinto volume da série “Groovy” (65m58s), compilada por Luca Trevisi para o selo italiano Irma. Assina suntuosa orquestração para sua composição “Whistle bump”, aqui num raro remix a cargo de Jimmy Simpson. A delegação brasileira se completa com o batera Dom Um Romão relendo “Escravos de Jó” (Milton Nascimento) em inspirado arranjo de Célia Vaz destacando o trompetista Alan Rubin, e com Chet Baker deslizando sobre “Salsamba”, de Rique Pantoja, responsável pelos teclados. Vale citar ainda “Love lock” (Mtume), “Evil Ways” (Willie Bobo), “Sotto ‘o sole” (Pino Daniele) e “Murilley” (Charlie Earland).
Outra coletânea com a grife Irma, “Alex Attias presents Quiet moments” (67m34s) traz o longo subtítulo “a selection of chilled and space jazz tracks”. Deu para entender? Então tente sentir o clima espacial do cardápio, bolado pelo DJ Alex sob medida para quem está numa trip de ecstasy ou se recuperando dela nas salas geladas chamadas de chill-out: “Autumn serenade” (John Coltrane & Johnny Hartman), “Golden dream” (Lonnie Liston Smith), “Children of the ghetto” (Courtney Pine), “Wives and lovers” (Rita Reyes & Oliver Nelson), “Señor blues” (Horace Silver) e “The Creator has a master plan”, a mais doidona e inusitada gravação de Louis Armstrong, em 1970, indicação perfeita para tirar do sério qualquer purista intragável que usa Louis como exemplo máximo do “jazz de raiz”. Valeu mesmo, Satchmo!
Legendas:
Dave Pike passeia por hits latinos e temas de João Donato nos dois discos reunidos no CD “Carnavals”
Deodato, Dom Um Romão e Chet Baker são os destaques do quinto volume da série “Groovy”
No comments:
Post a Comment