Tuesday, May 22, 2007

Vozes de feras e algozes

Vozes de feras e algozes
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 16 de Janeiro de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Uma recente safra de CDs mostra a diferente gama de moças e senhoras dedicadas ao canto jazzístico. Ótima oportunidade de se perceber também a diferença – às vezes um abismo – existente entre autênticas “jazz singers”, “jazz-oriented singers” e “cantoras que pensam que cantam jazz”. Neste vasto painel há feras de grande talento bem aproveitado (Rachelle Ferrell, Dee Dee Bridgewater) ou desperdiçado (Cassandra Wilson, Natalie Cole), revelações promissoras (Aeran Oh, Celia Malheiros) ou desalentadoras (Lorraine Bowen e as meninas do No Angels), e vários blefes (Ann Hampton Callaway, Jane Monheit, Luciana Souza). Compensando as torturas, volta ao mercado “Body and soul”, um dos melhores discos de Billie Holiday na fase final de sua carreira.

Primeiro time

Começando logo pelas divas do grupo especial temos a veterana Dee Dee Bridgewater marcando mais um golaço com “This is new” (Verve/Universal). Depois de um bom começo com a orquestra de Thad Jones & Mel Lewis, e de lançar alguns discos medíocres na cena pop-fusion nos anos 70, Dee Dee amargou um período de ostracismo, mudou-se para a França, e de lá ressurgiu com uma série de grandes álbuns (“At Montreux”, “Dear Ella”) para a Verve. Este novo CD é a melhor versão jazzística existente da obra do genial Kurt Weil, com os criativos arranjos de Cecil Bridewater (trompetista e ex-marido da cantora) e Thierry Eliez (piano e órgão Hammond) realçados pela fantástica qualidade de som obtida pelo engenheiro Al Schmitt.

Mrs. Bridgewater prova estar no auge da carreira, proporcionando recriações impecáveis de “Lost in the stars”, “Bilbao song”, “I’m a stranger here myself” e “September song”. A faixa-título, “This is new”, ganha tempero latino, enquanto a sensual “Speak low” rola em suave clima de bossa-nova puxado pelo batera André Ceccarelli nas vassouras. Momento tão sofisticado quanto a suntuosa balada “My ship”, reconstruída jazzisticamente pelo sopro de Miles Davis no antológico “Miles ahead” com Gil Evans, e aqui emoldurada por uma seção de cordas. Dá até para perdoar Dee Dee pelas bobagens ditas em 2002 contra Diana Krall, num acesso de inveja. Curiosamente, embora a contracapa liste 11 músicas, há uma décima-segunda faixa; após o término de “Here I’ll stay” rola um minuto de silêncio até a entrada do único tropeço do disco, “Mack the knife”, numa versão debochada e desleixada. Tipo gol contra na prorrogação.

Probleminha semelhante ocorre no “Live in Montreux” (Blue Note) de Rachelle Ferrell, cujas duas últimas faixas (“Me voila seul” e “On se reveillera”), frutos de um tributo a Charles Aznavour (!) com participação da alemã WDR Big Band, soam completamente deslocadas. Mas as gravações feitas durante um show de 91, e até então inéditas, compensam as derrapadas. Verdadeiro fenômeno vocal, dona de uma extensão absurda e do fraseado mais ousado do cenário jazzística contemporânea, Rachelle barbariza ao longo de “You send me”, “You don’t know what love is”, “My funny valentine”, “Bye-bye blackbird” e “Prayer dance”, viradas pelo avesso. Alcançando super-agudos inacreditáveis que levam a platéia ao delírio, a moça apronta verdadeira aula de uso da voz como instrumento, estimulada por um trio afiadíssimo: Eddie Green no piano, Tyrone Brown no baixo e Doug Nally na bateria. George Duke atua em duas faixas: a melosa “I’m special” e a inspirada “With every breath I take”.

Acertos e equívocos

Coreana radicada na Alemanha, Aeran Oh revela seu potencial no apropriadamente intitulado “Jazz poems” (K&K). Apoiada por um quinteto que inclui o virtuose pianista Jurgen Friedrich e o trompetista Stephan Zimmermann, a moça exibe seu timbre peculiar em temas instigantes que também evidenciam seus dotes como compositora: “Du bist mein”, “Pain” e “Arirang”, alem de “Fourty something”, do baixista Thomas Stabenow. Brasileira vivendo nos Estados Unidos, Celia Malheiros faz uma estréia igualmente promissora em “Sempre crescendo” (SCM), gravado na ponte aérea Rio-Califórnia. Hermeto Pascoal rouba a cena nas duas faixas em que participa: “Sempre crescendo com o mestre” (duo de piano & voz que enseja a performance mais criativa de Célia em todo o disco) e “Fremeto”, com o bruxo atacando de escaleta no arranjo assinado pelo discípulo Jovino, alicerçado por Marcos Nimrichter (piano), Itiberê (baixo) e Marcio Bahia (bateria).

Típica “cabaret singer”, Ann Hampton Callaway escolheu apenas standards para o macambúzio “Signature” (N-Coded). Cantora de poucos recursos, com um timbre enjoativo e sem o mínimo swing, transforma o CD numa longa tortura que o bom time de convidados (Kenny Barron, Wynton Marsalis, Frank Wess) não consegue atenuar. Tocando de forma burocrática, colaboram para o efeito soporífero da sessão, que se arrasta por 50 minutos. Para piorar, Ann dedica cada faixa a uma figura lendária, não se dando conta do ridículo de homenagear Sarah Vaughan, Tony Bennett e Billie Holiday com pífias interpretações de “Tenderly”, “The best is yet to come” e “Good morning heartache”. Auto-crítica também não existe para Luciana Souza, sub-Joyce paulista radicada em NY. Caso contrário, teria vergonha de gravar “Prá que discutir com madame” de forma tão medíocre, principalmente em se tratando de uma canção patenteada por João Gilberto. Pobre em todos os aspectos, “Brazilian duos” (Sunnyside) até poderia ser considerado como um disco mediano de MPB. Mas como jazz não passa de uma piada de muito mal gosto.

A mediocridade segue imperando em “Songs from the living room” (Irma La Douce), da inglesa Lorraine Bowen, autora de todas as 16 faixas em atmosfera lounge. As bases eletrônicas são repetitivas, robotizadas, sem charme ou sutileza. Os títulos das canções (“Bossy nova”, “French song”, “Ice cream lady”, “Man with the mobile phone”) já dão uma idéia da profundidade da obra, culminando com um atentado batizado de “Would you like to be buried or cremated?”. Outra forçação de barra, “When the angels swing” (Polydor) capta o quinteto No Angels – formado por gostosonas escolhidas para o grupo através de um programa da TV alemã, tal qual o Rouge no Brasil – adaptando seus maiores sucessos para um contexto pseudo-jazzístico, com arranjos de big-band a cargo do excelente trompetista Till Bronner. Impossível levar esta brincadeira a sério.

Em termos de desperdício de talento, ninguém desbanca Cassandra Wilson, a “Marisa Monte do jazz”. Em “Belly of the sun” (Blue Note), ela mais uma vez aposta no ecletismo tresloucado, misturando jazz com country, pop, rock e blues, indo de Jobim (“Águas de março”) a Bob Dylan (“Shelter from the storm”), passando por um James Taylor de má safra (“Only a dream in Rio”). Tudo em arranjos estranhos e instrumentação idem. Jane Monheit, desde já um dos maiores blefes do século, continua inexpressiva e desinteressante no insípido “In the sun” (N-Coded), a despeito de algumas faixas com orquestrações de Alan Broadbent e Vince Mendoza. Afetadinha em “Tea for two” e “Cheek to cheek”, ridícula em “Chega de saudade” e “Começar de novo” (em português, pasmem!), superficial em “It never entered my mind”, não demonstra chances de aperfeiçoamento e agradará somente aos menos exigentes.

Menos pior, ainda que também carente de inventividade, “Ask a woman who knows” (Verve/Universal) marca o reencontro de Natalie Cole com o produtor Tommy LiPuma. O resultado, porém, fica longe de repetir o estouro de “Unforgettable”. A melhor faixa acaba sendo “So many stars”, de Sergio Mendes, mas que nem se compara às performances de Sarah Vaughan e Tony Bennett. Depois de tanta embromação, recomenda-se uma dose de Billie Holiday, cujo álbum “Body and soul” (Verve/Universal), produzido por Norman Granz em 1957, acaba de ser reeditado. Apoiada por um timaço (Barney Kessel, Harry “Sweets” Edison, Ben Webster, Red Mitchell, Larry Bunker, Alvin Stoller e Jimmy Rowles), Lady Day arrasa em “Embraceable you”, “Darn that dream”, “Moonlight in Vermont” e outras jóias. Mesmo na fase final de carreira, quando muitos a julgavam em franca decadência, ela ainda soava fascinante. E continua emocionando mais do que todas as atuais cantoras juntas...

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