Tuesday, May 22, 2007

Revirando o acervo da Odeon

Revirando o acervo da Odeon
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 22 de Maio de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

O segundo pacote da série “Odeon 100 Anos” acaba de chegar às lojas, via EMI. Mais uma vez a escolha ficou a cargo do incansável Charles Gavin. E novamente a seleção (de 25 CDs) é heterogênea, misturando discos insignificantes (Skowa & A Máfia, Golden Boys, Eliana Pittman) com trabalhos curiosos (Dilermando Pinheiro, Rosa Maria, Wanderléa) e alguns petardos (Wagner Tiso, Edu Lobo, Lúcio Alves, Marcos Valle). Os CDs trazem ótimas, ainda que mínimas, sinopses – assinadas pelo mestre Tárik de Souza – acopladas às capas no formato de “stickers”, que muitos compradores inadvertidamente jogam no lixo ao abrirem as embalagens. Quando se dão conta, descobrem ter perdido o pouco de informação disponível sobre os disquinhos, já que as fichas técnicas reproduzidas no livreto são pífias neste quesito. Aliás, fica como sugestão que a EMI encomende textos mais amplos para inclusão nas capas da próxima safra.

Isto posto, vamos à música, começando pelos desperdícios. Neste caso encaixam-se “Fumacê”, uma das bobagens descartáveis dos afinadíssimos meninos do Golden Boys (que sempre pecaram pelo fraco repertório centrado em sucessos passageiros, muito aquém de suas capacidades vocais), o estranho blefe Skowa & A Máfia em “La famiglia”, e um disco bobinho, bobinho de Eliana Pittman (com participação de Luiz Wagner, menosprezada figura do samba-rock) em 72 – se era para recuperar algo da filha de Ofélia & Booker, mais valia o LP do ano anterior, com Gaya & Orlando Silveira, mesclando “Qui nem jiló” com o tema do filme “Anônimo Veneziano”. Ainda que de ralo conteúdo, pelo menos existem justificativas, digamos, “históricas”, para as reedições de Celly Campelo (“Estúpido cupido”, hit em 59) e “Apresentamos nosso Cassiano” (73), mítica figura da soul-music nativa.

Na área instrumental, as intenções também são melhores do que os resultados na tentativa de recuperar (quem “resgata” é bombeiro) trabalhos do pianista José Ribamar e do maestro Luiz Arruda Paes. “Noites cariocas”, gravado em 75 pelo parceiro de Dolores Duran, mostra Ribamar – então atração da boate Fossa, em Copacabana, ao lado de Marisa & Waleska – em clima de chá na confeitaria Colombo, aprisionado em arranjos pasteurizados. Paes, no “Brasil dia e noite” de 56, relançado em 74 pelo selo Coronado, abusa da grandiloqüência com metais estridentes – incluindo sua versão para o samba “A voz do morro” (Zé Kéti), prefixo do programa “Noite de gala”, campeão de audiência na TV dos anos 50. Mas a turma do dancefloor-jazz na Europa curte mesmo é o disco de 66, cuja faixa “Upa, Neguinho” incendeia as pistas londrinas há mais de uma década. Detalhe: a lista das músicas na contracapa do CD vem com a ordem errada, e com o ápice de desinformação assumida, ao deixar em branco os créditos de Direção Artística e Direção Musical. Colocam dois pontos e o consumidor que adivinhe os nomes!

Por falar em Edu Lobo, o craque que perdeu o rumo quando tentou virar Guinga quando já era Edu Lobo (será que fui claro?), está representado por uma de suas obras-primas. Trata-se do álbum de 73 pirateado na Europa sob o título “Missa breve”, no qual um timaço (Nelson Ângelo, Dori Caymmi, Tenório Jr., Novelli, Dom Salvador, Maciel, Paulo Moura, Fernando Leporace, Rubinho, Milton Nascimento) embeleza ainda mais “Vento bravo”, “Viola fora de moda”, “Zanga, zangada” e as cinco partes da tal Missa que representam, nas sábias palavras de Tárik, “um mergulho sincrético na liturgia”. Os arranjos supimpas de Edu, que inexplicavelmente entregou as orquestrações de discos recentes para pessoas com talento muito menor que o dele (será que algum dia alguém me explica isso?), rivalizam em matéria de criatividade somente com os “scores” magistrais de Wagner Tiso para três discos.

De forma contundente em seu monumental LP de estréia-solo, “Wagner Tiso”, concebido em 78 com participações irretocáveis de Otávio Burnier, Luizão Maia, Marku Ribas, Chico Batera, Altamiro Carrilho e o sumido batera Nelsinho, além das cordas inebriantes e dos vocais de Maria Lucia Godoy, Milton e Coral Pró-Arte. Faixas como “Os cafezais sem fim”, “A igreja majestosa” (parceria com Nivaldo Ornelas), “Choro de mãe” (hoje já um “clássico contemporâneo” do estilo, tal qual o “Chorinho pra ele”, do Hermeto) e “Rapsódia trespontana” são jóias do mais alto quilate. Meses depois, em 79, Wagner muito colaborou para o êxito de Lô Borges em “A via Láctea”, arrasando nas faixas “Tudo que você podia ser” (aprontando belo solo no piano elétrico Rhodes) e “Clube da esquina nº 2”, com o casal Robertinho & Aleuda na percussão.

Tiso já arrasava no tempo do Som Imaginário, cujo terceiro, último e melhor LP, “Matança do porco” (captado em 73 com Luiz Alves, Robertinho Silva e Tavito) reaparece em CD. E outro mistério: por que motivo foi agora usada a capa “falsa”, da reedição pelo selo Coronado (um mal-disfarçado anúncio de Ballantine’s), ao invés da original com belas fotos de Rubens Maia, reproduzida no primeiro relançamento em CD, em 98, na série Portfólio da própria EMI??? De qualquer modo, se alguém perdeu a primeira reedição, não deve perder esta. Se algum dia existiu uma “fusion-brasileira” feita no Brasil (Airto, Flora, Deodato fizeram lá fora), ela está contida neste discaço. E dá muita saudade (e tristeza) pensar que um dia este país teve uma rádio como a JB-AM, que naquele distante 73, programada pelo genial Simon Khoury, tocava petardos como “A3”, “Mar azul” e “Armina”, reinventada em três vinhetas regidas por Gaya, Arthur Verocai e Paulo Moura. Ah, apesar de não constar dos créditos, Bituca faz o vocal na assombrosa faixa-título.

Um clima psicodélico, surpreendentemente arrojado para o perfil da intérprete, permeia “Vamos que eu já vou”, arquitetado para a antiga “ternurinha” Wanderléa por seu namorado nos idos de 77. Ninguém menos que Egberto Gismonti, pilotando piano acústico, elétrico Rhodes, sintetizadores analógicos Arp e Moog, violões envenenados por phasers & delays, kalimba e escaleta! Para se ter uma idéia da trip, basta dizer que o disco abre com uma pauleira chamada “A terceira força”, dos colegas de jovem-guarda Roberto & Erasmo, mas que poderia vir assinada pelo próprio Egberto. Por sinal, o craque assume a paternidade de quatro faixas, a destacar “Café”, lançada como instrumental no LP “Corações futuristas”. Tudo com a firmeza da regência de Gaya, o pulsar seguro do baixista Waldecyr (por onde andará esta criatura?) e as diabruras de Robertinho na bateria. Fechando com a “Dança mineira” de Aécio Flávio & Tibério Gaspar.

Outras indicações: o duo até hoje insuperável (apesar da sonoridade datada do piano elétrico Yamaha CP-70) de César Mariano & Hélio Delmiro em telepático entrosamento ao longo de “Samambaia” (81), perfeito equilíbrio de técnica & emoção; a genialidade de Alfredo da Rocha Viana em “Som Pixinguinha” (71), quando o produtor Hermínio Bello de Carvalho juntou o Santo com Altamiro, Zé Menezes, Copinha, Pedro Sorongo, Canhoto, Dino, Meira, Dom Salvador, Orlando Silveira, Tião Marinho e até a guitarra ultra-distorcida de Geraldo Vespar; o Coro dos Compositores da Portela (leia-se Candeia, Monarco, Norival Reis e Paulinho da Viola, entre outros bambas) em “Minha Portela querida – sambas de terreiro”; Nadinho da Ilha soltando o vozeirão para mostrar que tinha a “Cabeça feita” com auxílio de Délcio Carvalho, Wilson Batista e João de Aquino; e Dilermando Pinheiro, com Baden na guitarra, exibindo seu peculiar “Batuque na palhinha” (58).

Em matéria de curiosidades, igualmente recomendáveis, vale destacar “Lúcio Alves, sua voz íntima, sua bossa nova, interpretando sambas em 3-D” (59), com o cantor dando um show de divisão sobre ousados arranjos de Lindolpho Gaya que transformam tudo (inclusive “Nem eu”, “Conceição” e “Ninguém me ama”) em samba. Dezenove anos depois, ao lado de Doris Monteiro, perpetrou “Doris e Lúcio no projeto Pixinguinha” (relançamento sugerido a Gavin pela própria cantora), alinhavado pelos arranjos & piano elétrico do subestimado Ricardo Albano Jr., com o batera Aladim (de famosa participação no “Lugar comum” de Donato) fornecendo o tempero exato para a dupla mostrar sua verve em “Mudando de conversa” (parceria de Hemínio com o saudoso Mauricio Tapajós, produtor do disco) e “De conversa em conversa” (Lúcio com Haroldo Barbosa).

Há ainda as estréias de Sérgio Ricardo (“Não gosto mais de mim”, 1960, produzido por Aloysio de Oliveira) e Rosa Maria (“Uma rosa com bossa”, 66, apadrinhada por Simonal, cantando Mario Castro-Neves, Chico Feitosa, Tito Madi), e da banda “A Brazuca”, fundada em 69 por Antonio “3-D” Adolfo com vocais de Bimba & Julie Janeiro a serviço de eclético repertório. Caracterizada de baiana na foto da capa de “Elza carnaval & samba” (69), a endiabrada Soares faz o que pode na atmosfera de “baile de salão” imposta pelos arranjos previsíveis do trombonista Nelsinho. Já os meninos do Bossa 3 (Luiz Carlos Vinhas, Octavio Bailly Jr. e Ronnie Mesquita) extrapolam para o bem todos os limites no fascinante “Os reis do ritmo” (66, previamente lançado em CD no Japão em 96), somando uma bateria de escola de samba nas impactantes faixas “Não me diga adeus” e “Exaltação a Mangueira”. Conseguem ainda o milagre de injetar sangue novo no “Samba de verão”, dos irmãos Valle, que posam de óculos escuros na capa do emblemático “Mustang cor de sangue” (68). Marcos & Paulo Sergio arriscam um “Samba de verão 2”, acertam na mosca em “Tigre da Esso que sucesso”, “Dia de vitória” (emocionante arranjo de Eumir Deodato), “Azimuth”, a deliciosa “Mentira carioca” e o sensacional “Frevo novo”, parceria com Taiguara e Novelli. Que venha logo a próxima safra, com “Caterina Valente & Luiz Bonfá” no abre-alas.

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