A obra-prima de Taiguara
Arnaldo DeSouteiro
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 19 de Fevereiro de 2003, publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa" e reproduzido em diversos websites
Com o extermínio da bossa nova em solo brasileiro, a incorporação da pseudo-revolução da tropicália ao “mainstream” – duas barbaridades que a mídia alegre regozijava-se em apregoar no início dos anos 70 – e ainda o fim da chamada “era dos festivais”, a música brasileira entrou em um período de involução que perdura até hoje. Este deplorável cenário, que agora ameaça até a sobrevivência das gravadoras, retrata fielmente a pobreza musical brasileira, vampirizada por intelectuais de armário, por uma mídia que finge atacar o jabá que a sustenta, e principalmente pelos “executivos da índústria do disco”, inabaláveis na determinação de oferecer ao distinto público a maior quantidade de lixo possível. E tome pagode mauriçola, tome “axé music” que virou sinônimo de “música baiana” (coitada da Bahia! e mais respeito ao axé como tentou exigir o sábio Caymmi), e haja paciência com os breganejos que resistem e se multiplicam como insetos. Todos com lugar cativo no sofá da Tia Hebe e no castelo de Caras.
A situação, que já era péssima, entrou em fase crítica quando o glorioso Plano Real não tirou ninguém da miséria mas permitiu que muita gente se endividasse comprando equipamento “3 em 1” em 36 vezes sem juros. As classes C, D e E ascenderam ao paraíso do CD, e as multinacionais não perderam tempo em fornecer matéria-prima para atender à demanda daquela nova horda de consumidores. Achavam todos que viveriam felizes para sempre, com qualquer tchan vendendo 2 milhões de discos. Mas veio a internet, surgiram os gravadores de CD, a pirataria proliferou, a grana do povão encurtou, a classe média ruiu, e o reino da fantasia agoniza. A tal da indústria haverá de achar uma saída, como sempre achou. Inclusive porque conhece as benesses da “dança das cadeiras”. E os eternos califas sempre ajudarão um antigo cúmplice desempregado. Por isso o portentoso elenco da Abril Music não precisa se preocupar. Logo logo todos acharão abrigo no cast de outras companhias, furando a fila dos “tolos” que insistem em apresentar algo novo ou sonham com um trabalho autoral.
Mas, e a tal da música brasileira? Será que o modismo do chorinho e do samba-de-raíz dura até o próximo verão? Serão o maxixe e o corta-jaca realmente a próxima onda do mercado? Será que os nossos músicos estão mesmo “numa boa” tocando em quiosques com couvert a 3 reais, com direito a contrair dengue e pisar em fezes de cachorro no intervalo? Os ilustres representantes da bossa geriátrica estarão mesmo “estourando” no exterior, ou apenas tocando em churrascarias de Tokyo? A “vanguarda” (que piada!) está de fato concentrada na Trama, com seus infinitos investimentos a fundo perdido? As mesmas panelinhas continuarão mamando nas tetas dos centros culturais? Os formadores de opinião da alma carioca seguirão glamourizando a trilha sonora do tráfico? A mídia permanecerá fingindo que o Grammy Latino tem algum valor? Os papelotes irão de fato se firmar como moeda corrente do jabá? Enquanto isso, vamos aguentando os bondes dos tigrões com suas cachorras e eguinhas pocotós.
Com o extermínio da bossa nova em solo brasileiro, a incorporação da pseudo-revolução da tropicália ao “mainstream” – duas barbaridades que a mídia alegre regozijava-se em apregoar no início dos anos 70 – e ainda o fim da chamada “era dos festivais”, a música brasileira entrou em um período de involução que perdura até hoje. Este deplorável cenário, que agora ameaça até a sobrevivência das gravadoras, retrata fielmente a pobreza musical brasileira, vampirizada por intelectuais de armário, por uma mídia que finge atacar o jabá que a sustenta, e principalmente pelos “executivos da índústria do disco”, inabaláveis na determinação de oferecer ao distinto público a maior quantidade de lixo possível. E tome pagode mauriçola, tome “axé music” que virou sinônimo de “música baiana” (coitada da Bahia! e mais respeito ao axé como tentou exigir o sábio Caymmi), e haja paciência com os breganejos que resistem e se multiplicam como insetos. Todos com lugar cativo no sofá da Tia Hebe e no castelo de Caras.
A situação, que já era péssima, entrou em fase crítica quando o glorioso Plano Real não tirou ninguém da miséria mas permitiu que muita gente se endividasse comprando equipamento “3 em 1” em 36 vezes sem juros. As classes C, D e E ascenderam ao paraíso do CD, e as multinacionais não perderam tempo em fornecer matéria-prima para atender à demanda daquela nova horda de consumidores. Achavam todos que viveriam felizes para sempre, com qualquer tchan vendendo 2 milhões de discos. Mas veio a internet, surgiram os gravadores de CD, a pirataria proliferou, a grana do povão encurtou, a classe média ruiu, e o reino da fantasia agoniza. A tal da indústria haverá de achar uma saída, como sempre achou. Inclusive porque conhece as benesses da “dança das cadeiras”. E os eternos califas sempre ajudarão um antigo cúmplice desempregado. Por isso o portentoso elenco da Abril Music não precisa se preocupar. Logo logo todos acharão abrigo no cast de outras companhias, furando a fila dos “tolos” que insistem em apresentar algo novo ou sonham com um trabalho autoral.
Mas, e a tal da música brasileira? Será que o modismo do chorinho e do samba-de-raíz dura até o próximo verão? Serão o maxixe e o corta-jaca realmente a próxima onda do mercado? Será que os nossos músicos estão mesmo “numa boa” tocando em quiosques com couvert a 3 reais, com direito a contrair dengue e pisar em fezes de cachorro no intervalo? Os ilustres representantes da bossa geriátrica estarão mesmo “estourando” no exterior, ou apenas tocando em churrascarias de Tokyo? A “vanguarda” (que piada!) está de fato concentrada na Trama, com seus infinitos investimentos a fundo perdido? As mesmas panelinhas continuarão mamando nas tetas dos centros culturais? Os formadores de opinião da alma carioca seguirão glamourizando a trilha sonora do tráfico? A mídia permanecerá fingindo que o Grammy Latino tem algum valor? Os papelotes irão de fato se firmar como moeda corrente do jabá? Enquanto isso, vamos aguentando os bondes dos tigrões com suas cachorras e eguinhas pocotós.
E o que o saudoso Taiguara, uruguaio de nascimento, brasileiro de coração, citado lá em cima no título, tem a ver com essa história repugnante? Bem, acontece que no início desse processo de degradação da MPB, lá nos idos de 70, alguns discos apresentaram caminhos evolutivos que poderiam ter sido seguidos. - mas que os Sarneys da MPB preferiram (re)negar, sempre prontos a ceifar qualquer tentativa de alteração do status-quo, qualquer transgressão a rótulos e padrões preestabelecidos. Álbuns como “Matança do Porco”, do Som Imaginário. “Terra dos Pássaros”, de Toninho Horta. O disco de 74 do Tamba Trio. “Corações Futuristas”, de Egberto Gismonti. E uma maravilha chamada “Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara”, agora relançada pela primeira vez em CD. No Japão, claro, pela EMI-Toshiba, mas que pode ser adquirido nas boas importadoras ou via internet em websites como www.dustygroove.com, www.towerrecords.co.jp ou www.gemm.com. Porque a máfia que domina o território das reedições no Brasil deve desconhecer o álbum. São os tais produtores que não produzem e pesquisadores que não pesquisam.
A obra-prima da carreira de Taiguara pertence à uma época distante, na qual inexistia a ridícula divisão entre música instrumental e vocal, que ajudou a colocar nossos músicos num gueto sem saída, cultivando o ódio aos canários, numa falsa presunção de que toda música instrumental é de alta qualidade e toda música vocal, inferior. “Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara” tem faixas cantadas, outras instrumentais. Mas todas sensacionais, transbordando criatividade, fruto de uma união de talentos poucas vezes vista em produções da MPB. Entre os mais de 80 participantes estão alguns dos nossos maiores músicos, de diferentes gerações, convivendo num clima de contagiante entusiasmo pelo som que brotava no amplo (e hoje destruído) estúdio da Odeon, no verão de 1976. Estavam juntos os saxes de Zé Bodega, Jorginho, Walter Rosa e Nivaldo Ornelas, as flautas de Mauro Senise, Raul Mascarenhas e Celso Woltzenlogel, o cavaquinho de Neco, os trompetes de Maurílio, Formiga, Maurílio e Heraldo, o violão de Toninho Horta, o baixo de Novelli, as baterias de Paulinho Braga e Zé Eduardo Nazário, o bandoneon de Ubirajara Silva, as cordas comandadas pelo spalla Giancarlo Pareschi com Peter Dauelsberg liderando os cellos.
Brasileríssimo na essência, universal no poder de encantamento, o disco vale também como uma aula de orquestração, graças aos geniais arranjos de Hermeto Pascoal e do próprio Taiguara, que de saída mostra o quanto aprendeu com Gaya nos scores irretocáveis para “Pianice” (somando trompas, clarintete e vibrafone), “Delírio transatlântico e chegada ao Rio” (incluindo narração de uma partida no Maracanã) e “Público”. Logo depois, Hermeto proporciona outra lição de instrumentação na emocionante “Terra das palmeiras”, uma maravilha melódico-harmônica, talvez o ponto alto entre tantos momentos brilhantes. Seria de utilidade pública que nossos atuais arranjadores, carentes de imaginação e sutileza, pudessem ouvir este disco! E para quem toma o padrão rasteiro de “Já sei namorar” como exemplo máximo de inteligência poética, cultuando a indigência das Montes e Calcanhotos, as letras de Taiguara talvez soem ininteligíveis. Porém, o compositor antes estigmatizado pelo romantismo considerado exacerbado de canções como “Universo no teu corpo”, estava endiabrado em 76.
Basta ouvir, por exemplo, os versos do sincopado “Samba das cinco”, repleto de dribles desconcertantes, entoados em uníssono com o cello de Jacquinho Morelembaum: “Sou carioca/se não é da gema do ovo é do umbigo da cuíca/Fogo da raça/Me queima que o samba é melhor quando o couro se esturrica/O tempo passa/e nem o tecido da Casa Pernambucana fica”. Para escapar da censura prévia a que todas as letras eram submetidas naquele tempo (a ficha técnica espertamente alegava “por motivo de edição”), algumas músicas foram assinadas por Gheisa Gomes Chalar da Silva. Entre elas, “Situação”, claro libelo contra a ditadura. Entretanto, por mais contundente que fosse a crítica, Taiguara mostrava ser possível contestar sem cair nos clichês da “canção de protesto”, sem descambar para a reles planfetagem, mantendo o nível musical altíssimo, armando verdadeira improvisação coletiva envolvendo a flauta de Hermeto, o tenor de Nivaldo Ornellas e o violão de Toninho.
Importante destacar também o aprimoramento de Taiguara não apenas como cantor (domando e dosando a voz de um jeito que Ivan Lins ainda hoje não conseguiu) mas também como tecladista, estraçalhando no piano acústico (um show de balanço em “Aquarela de um país na lua”, brincando com a célula rítmica da introdução de “Aquarela do Brasil”), nos sintetizadores (pilotando um Minimoog em “A volta do pássaro ameríndio”) e até num dinossáurico Mellotron, usado na lírica “Luanda, violeta africana”, dominada pela harpa de Lucia Morelembaum. Já na marcha-frevo “Primeira bateria”, quem rouba a cena é o pai de Taiguara, Ubirajara Silva, craque do bandoneon. A orquestração de Hermeto para a unica música não composta pelo líder, “Três Pontas”, consegue superar até mesmo os arranjos de Luiz Eça e Eumir Deodato nas gravações de Milton Nascimento. Tudo valorizado pela esplendorosa qualidade de som, e em especial pela criativa mixagem de Nivaldo Duarte, um show à parte.
Wagner Tiso, além de assinar a produção do disco, recebeu o crédito de regente, embora uma foto do encarte mostre o próprio Taiguara conduzindo a seção de trompas. Aliás, o CD reproduz, no livreto de 24 faixas, todas as fotos, desenhos, textos originais e a ficha técnica completa do LP, originalmente lançado em capa dupla, com o lay-out de Thomas Michael Lewinsohn em sintonia com a ousadia estética da obra. O disco chegou às lojas em maio de 76, e rapidamente sumiu das prateleiras. Foi desancado por Sérgio Cabral, então crítico de discos do jornal “O Globo”, e toda a imprensa fez coro. Reza a lenda que algumas “pessoas do meio” alertaram a Odeon para o conteúdo belicoso do trabalho, o que poderia gerar represálias do regime militar à gravadora. Esta teria então tirado de circulação o petardo, jamais reprensado. Taiguara fez alguns outros discos antes de falecer precocemente em 96, aos 50 anos. Mas nenhum chegou perto de “Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara”, cujas palavras em tupi-guarani significam: Imyra – árvore, madeira, pão/Tayra – filho/Ipy – cebeça de geração, primeira origem/Taygoara – forro, livre, senhor de si. Como diz o verso final da faixa “Sete cenas de Imyra”: “Quero essa língua outra vez/Quero esse palco e esse chão/Brinca tupi-português/Dentro do meu coração”. Amém.
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