Tuesday, May 22, 2007

Feras do jazz em nova safra de DVDs

Feras do jazz em nova safra de DVDs
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 25 de Junho de 2003 e originalmente publicado no jornal "Tribuna da Imprensa"


Enquanto a venda de CDs despenca ladeira abaixo, vitimada por preços altos, pirataria e febre de downloads via internet, o consumo de DVDs continua crescendo a passos largos no mercado brasileiro. A quantidade de lançamentos aumenta a cada semana, não apenas na área de filmes, mas também em matéria de música – inclusive o jazz, gênero freqüentemente associado a um público elitista. Uma recente safra traz performances jazzísticas para os mais variados gostos, incluindo criativas homenagens a John Coltrane e Bill Evans, um classudo recital do pianista Kenny Drew e um decepcionante encontro de saxofonistas.

Inspirados tributos

Uma das primeiras companhias nacionais a apostar no formato que tende a aposentar o VHS num futuro breve, a ST2 inova agora ao lançar uma série de DVDs-duplos, batizada Double Time Jazz Collection. A capa anuncia “2 programmes on 1 DVD”, mas ao abrir a embalagem vem a surpresa: lá estão dois DVDs, embora ambos tenham apenas cerca de 55 minutos de duração. Ou seja, somente alguma questão contratual pode explicar o motivo pelo qual os dois shows em questão – “Tribute to John Coltrane” e “Tribute to Bill Evans” – não estão reunidos num único DVD. Burocracias à parte, são performances notáveis, reverenciando duas figuras geniais sem cair na imitação. Muito ao contrário, graças à qualidade dos músicos envolvidos, as homenagens primam por elevado grau de inventividade.

Previamente editado em CD e LaserDisc, produzido por Kiyoshi Itoh, o tributo a Coltrane tem o subtítulo “Live under the sky”, pois foi gravado em 1987 no saudoso festival que rolou até meados dos anos 90 no anfiteatro Yomuri Land, no Japão. A turma de all-stars conta com uma seção rítmica infernal (Richie Beirach no piano, Eddie Gomez no baixo e Jack DeJohnette na bateria) estimulando Wayne Shorter e Dave Liebman, que atuam exclusivamente no sax soprano, apesar de serem também excelentes tenoristas. Após um depoimento-cabeça do ultra-zen Shorter, o quinteto ataca de “Mr. PC”, clássico tema dedicado ao contrabaixista Paul Chambers, e não ao bisonho tesoureiro assassinado. Os arrojados solos de Shorter e Liebman permitem salutar comparação entre os estilos dos dois saxofonistas, de sonoridades e concepções inteiramente distintas.

Beirach e Liebman, que chegaram a ter um belo LP em duo (“Forgotten fantasies”, para o selo Horizon) lançado no Brasil pela EMI em 76, armam reflexivo diálogo em duas baladas de refinado lirismo: “After the rain” e a famosa “Naima”, que leva a platéia ao delírio. Os outros músicos retornam ao palco para um apoteótico final na longa versão de “Impressions”, iniciada pelas evoluções do audaz Eddie Gomez. Há extensos improvisos de todos, inclusive de Jack DeJohnette numa bateria fumegante de incessante polirritmia. O suor faz com que uma das baquetas escape de suas mãos no meio do solo, mas o experiente senhor não perde o pique nem a pose.

Similar dose de originalidade também é encontrada na celebração ao talento de Bill Evans, captada ao vivo no Brewhouse Theatre, em Tauton, Canadá. O timaço, que se reuniu inicialmente para gravar o disco “Seven Steps to Evans” para a MPS em 79, conta com três ingleses (o pianista Gordon Beck, o saxofonista/flautista Stan Sulzmann e o batera Tony Oxley), um canadense (Kenny Wheeler, revezando no trompete e flugelhorn) e um jovem monstro alemão, o contrabaixista Dieter Ilg, substituindo Ron Mathewson. Todos em grande forma, recriando jóias de Evans. Tudo em clima de extrema criatividade, até mesmo na seqüência do repertório. Tanto que “Peri’s Scope”, utilizada freqüentemente por Evans como tema de encerramento em seus concertos, aparece logo como música de abertura.

Beck, o líder informal da efeméride, contribui com uma composição própria, “Not the last waltz”, abrindo espaço para números-solos de Dieter Ilg (cuja técnica virtuosística lembra o dinamarquês Niels Petersen, apesar da sonoridade mais robusta) e Tony Oxley, figura alucinada que incendeia os comparsas atuando num “set” que mistura peças de uma bateria convencional com vários instrumentos de percussão – algo semelhante aos “conceitos” desenvolvidos por Airto Moreira (na época do grupo Fourth World) e Trilok Gurtu (em sua fase com John McLaughlin). Sem os sopros, o trio de base tem seu grande momento em “Blue in green”, parceria de Bill & Miles Davis lançada no antológico “Kind of blue”, aqui atribuída somente ao pianista. As surpresas sucedem-se infinitamente, a ponto da lírica “Waltz for Debby” surgir em clima de vigoroso hard-bop.

Assombro e decepção

Excelente pianista que nunca alcançou a glória merecida, o saudoso Kenny Drew (1928-1993) lidera afiado trio com Niels Pedersen (extraordinário baixista, sempre impressionando pela fluência nos solos) e Alvin Queen (baterista infalível, jamais apelando para o exibicionismo gratuito) em “Live at Brewhouse Jazz”. Acompanhante de Lester Young, Charlie Parker, Dinah Washington e Art Blakey, Drew, radicado na Europa desde 61, pai do também pianista Kenny Drew Jr., exibe sua elegância através de irrepreensível cardápio. Começa com “In your own sweet way” do mestre Dave Brubeck, passa pelo standard “It might as well be spring” (tema de Rodgers & Hammerstein para o filme “State fair”, de 1945), esbanja balanço no calypso “St. Thomas” de Sonny Rollins, atinge o máximo de refinamento a la Tommy Flanagan na elegante revisão de “It could happen to you”, e fecha a tampa com uma adaptação vibrante de “Hushabye”. Estranhamente, na lombada do DVD, ao invés de Kenny, aparece uma foto de Pedersen.

Também filmado no mesmo Brewhouse Theatre, “Roots – Salute to the saxophone” reúne quatro saxofonistas de segundo-time apoiados por uma pouco entrosada seção rítmica, formada por outro pianista falecido precocemente (o fabuloso Don Pullen, escondido em arranjos quadradões), um jovem baixista muito simpático mas totalmente inexpressivo (Santi Debriano) e o veterano batera Idris Muhammad, de primeiríssima categoria, mas que atua de forma quase burocrática neste show decepcionante. O septeto completo aparece somente nos temas de abertura (“Never always”) e encerramento (“Lester leaps in”). As demais faixas trazem um saxofonista de cada vez, começando pelo sobrevalorizado Arthur Blythe (atração recente do Chivas Jazz) no sax-alto estridente em “Parker’s mood”. Sam Rivers, decadente, esforça-se no tenor em “Body and soul”. Chico Freeman, também no tenor, homenageia seu pai Von Freeman, bem mais talentoso, em “After dark”. Nathan Davis (soprano) faz apática leitura da sublime balada “You don’t know what love is”. Tudo em clima sorumbático, infelizmente. Acontece nas melhores famílias.

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