Mais uma obra-de-arte do gênio João Gilberto
Arnaldo DeSouteiro
(artigo escrito em 7 de Novembro de 2002, com a colaboração de Paulo Levita, e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa")
O universo musical está em êxtase! Na fase mais patética, pobre e “involutiva” da história da MPB, um novo disco de João Gilberto – “Live at Umbria Jazz” - acaba de ser lançado, para enriquecimento da cultura mundial. E que discaço! Sem a menor dúvida, seu melhor trabalho desde “João”, aquele ornamentado pelos supimpas arranjos de Clare Fischer em 1991. E também seu melhor disco ao vivo desde a antológica apresentação em Montreux, em 85. Além do mais, não é todo dia que aparece um novo CD de João, cuja carreira discográfica nunca seguiu as “regras de regularidade” do mercado, jamais cedendo a pressões da indústria para gravar isso ou aquilo. Caso único de artista sem concessões, atento apenas aos pedidos de sua própria alma criativa, que lhe dita quais músicas continuar burilando infinitamente ou que pérolas deve ressuscitar para garantir-lhes a imortalidade.
Importante frisar que, além do nível de genialidade cada vez mais aprimorado de João Gilberto, “Live at Umbria Jazz” (59m53s) marca pontos também pela impecável qualidade de som, graças a sabedoria dos engenheiros Gianni Grassilli (gravação) e Giampiero Berti, responsável pela edição. Graças a eles, desta feita não temos o incômodo abafamento do estranho “João, voz e violão” (2000), marcado pelo violão “rebumbante” (definição do próprio JG), nem a desagradável constante interferência da ruidosa platéia de Montreux. Muito menos a tétrica edição de “Eu Sei Que Vou Te Amar” (registrado ao vivo no Heineken Concerts, no Rio, em 1994), golpeado por um bizarro “editing” que degolou introduções, abortou finalizações, e terminou por ceifar a alma do disco.
Desta feita, estamos livres de todos esses problemas. Saltam aos ouvidos a maciez da voz & do violão, entrelaçados formando um único instrumento – como deveria ser sempre. Tal perfeito equilíbrio proporciona a condição ideal para que JG desfile sua magia habitual diante da educadíssima platéia presente ao imponente Teatro Morlacchi, em Perugia, em 21 de julho de 1996. Sim, este novo CD resulta do show de João em 96 (!), embora ele já tenha retornado a Umbria outras vezes. Mas, ao escolher qual a performance que merecia ser prioritariamente editada pela gravadora italiana EGEA, em uma série que inclui também os shows de Gil Evans, Carmen McRae e do grupo Sphere (especializado em recriar as obras de Monk) em outras edições do Festival, todos os envolvidos foram unânimes em escolher aquela de seis anos atrás.
Por falar em recriação, JG segue lapidando o mesmo repertório, para alegria dos chatos de plantão sempre prontos a cobrar “renovação” – só pelo prazer doentio de exercerem sua chatice, pois na verdade pouco se importam com arte, e sim com jabá, tramas, conspirações etc. E para desespero dos que conhecem o sem número de canções que fazem parte exclusivamente do seu “cardápio doméstico”. Os fãs mais sábios, porém, aceitam essa decisão assim como os católicos aceitam o Mistério da Santíssima Trindade. A compenetrada platéia de Umbria não berra durante as músicas, ao contrário dos bêbados sarados e das cachorras que invadem as “noites brasileiras” de Montreux.
Cientes do privilégio em participar daquele momento sagrado, os italianos reverenciam em silêncio o mestre, embora nem sempre seja possível controlar a emoção. Pelo menos não ao final da demencializante reinvenção de “Pra Que Discutir Com Madame?” (JG consegue o milagre de superar até mesmo a soberba versão de Montreux, que ressuscitou o tema de Janet de Almeida & Haroldo Barbosa até então condenado ao obscurantismo). Tampouco diante do freasado improvisado na “tag” de “Desafinado”, quando os não-praticantes de sexo tântrico irrompem em aplausos precoces. Ou ao término de mais um “O Pato”, com direito a um trombone imaginário e a troca de plumagem detectada por Tárik de Souza. Daqui em diante, passo a palavra para o engenheiro civil e violonista (ou vice-versa) Paulo Levita, uma das maiores autoridades, senão a maior, em João Gilberto, ídolo, mentor e amigo. Minha “saída” para não cair em mais redundância, e oferecer ao leitor uma análise musical preciosa.
O engenheiro
“Guilherme Bitencourt de Souza Ávila, professor emérito da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, tinha um pensamento lapidar que usava em defesa da nossa profissão: “Engenharia é a arte de engenhar. O engenheiro é aquele que engenha”. Ora, considerando toda a imensa engenhosidade de João Gilberto ao longo de sua obra e fazendo uma analogia com a máxima do eminente professor, posso afirmar que João Gilberto é um engenheiro.
Pronto, agora que estamos colegas, sinto-me mais à vontade para falar desse seu engenho (como músico, eu não ousaria jamais!). São palavras de contemplação. Não acredito que haja alguém com capacidade para criticar ou julgar a obra de João Gilberto, exceto ele mesmo, que, em virtude de sua obsessão em busca do mais que perfeito, acha sempre que poderia ter feito melhor.
João talvez não se dê conta de que já tenha atingido o máximo de excelência, há muito tempo. Para ser mais preciso, desde quando criou e difundiu a bossa-nova em todo o mundo. Na faixa de abertura do novo CD, “Isto aqui o que é?”, João mantém praticamente as mesmas harmonias das gravações anteriores (Montreux e Heineken), trabalhando em Si Maior. Em Umbria a divisão está bem mais complexa, proporcionando um balanço mais acentuado no decorrer de toda a música. A saída (Si maior com sexta e Fá sustenido no baixo) é uma beleza. É o acorde colocado no lugar certo.
Quando João gravou “De conversa em conversa” no CD “João Gilberto en México” a tonalidade era Lá maior. No momento em que ele canta a frase “está querendo é nos separar”, o acorde usado é uma diminuta em Lá, para em seguida cair na tônica. Já era lindíssimo, só que agora, em Umbria, João desceu dois tons e executa esta canção em Fá maior. Como Fá é a penúltima nota mais grave no violão, o timbre ficou mais contundente, inclusive com a nota Ré (a quarta corda) soando solta, no momento da diminuta. É a própria “separação”!
João Gilberto se vale também da capacidade de descobrir acordes que refletem com precisão o sentimento que a letra da música está tentando transmitir. Ainda nessa faixa, além do balanço e divisão primorosos, ele faz dois “glissandos” (uma escorregada com a mão esquerda, na pegada do acorde, em quase meio tom) magistrais: nas frases “meus farrapos” (Fá com sétima) e “não sou limão eu não” (Si menor com sexta). O violão, como sempre, vale por uma orquestra!
As modulações sucessivas ao longo de “Pra que discutir com madame?” (alternando Ré maior e Mi maior), além de efeitos com a boca, sugerindo o contratempo da bateria, dão todo o charme dessa interpretação. Ponto de destaque: João faz uma pausa no canto e elabora uma seqüência de acordes da maior elegância (Sol com sétima maior, Fá sustenido com sétima, Si com sétima e nona e Fá sustenido no baixo, Mi com sétima e nona, Lá com sétima, Ré com sexta, Sol com sétima maior, Fá sustenido com sétima, Si com sétima e nona, Mi com sétima e nona, La com sétima e décima terceira {décima terceira menor, sétima e nona menor}, Ré com sétima maior e nona) e aí retoma o canto.
Por falar em acordes colocados no lugar certo, permitam-me uma rápida digressão: antes da bossa-nova o jazz reinava sozinho como o gênero musical mais complexo, sedutor e elegante que se tinha conhecimento. Os primeiros acordes com dissonâncias simples (menor com sexta, menor com sétima, maior com sétima maior etc.) efetivamente apareceram com o jazz e até hoje são conhecidos como acordes jazzísticos. Daí surgiu João Gilberto com a batida sincopada inspirada no samba-canção e no samba tradicional, usando aqueles acordes; porém, com um detalhe de vital importância: a colocação criativa dos mesmos, a elaboração perfeita da harmonia. Os norte-americanos sabiam os acordes, fizeram melodias as mais lindas, contudo nem sempre souberam colocar esses acordes nos lugares certos. Para completar essa enorme contribuição harmônica dada aos músicos do mundo inteiro, João acoplou ao violão sua voz de cadência e divisão inigualáveis. Com esta sofisticação a bossa-nova segue influenciando o jazz, cujo exemplo mais recente é o novo CD de Diana Krall, onde, na faixa ‘S wonderful, com arranjo de Claus Ogerman, Diana usa quase toda a harmonia de João Gilberto gravada no CD “Amoroso”.
Em “Corcovado”, João Gilberto exibe toda a força de sua interpretação com uma dramaticidade nunca vista anteriormente. Na primeira gravação (LP “O amor, o sorriso e a flor”, em 1960), na segunda (“Getz/Gilberto” em 63) e ao vivo no Carnegie Hall com Astrud & Stan Getz (“Getz/Gilberto #2” em 64) João executa esta canção em Dó maior. Na gravação do Heineken Concerts, ele desce um tom e meio, e aí, em virtude também do timbre mais grave do violão, já se pode perceber uma maior senso trágico na interpretação. Agora, em Umbria, João Gilberto eleva essa interpretação ao mais alto grau de dramaticidade, numa homenagem inequívoca ao portentoso Jobim.
“Lá vem a baiana” é uma descrição em 3ª dimensão! Impressionante como o canto, associado ao balanço estupendo do violão, dá a idéia exata da baiana brejeira com saia rendada, sandália enfeitada, chegando e convidando para sambar, tal como Caymmi imaginou! João Gilberto nesse momento passa a ser parceiro do velho mestre. A alternância dos acordes (Mi menor com sétima e Mi menor com sétima e nona), a batida desconcertante, onde a harmonia se intercala com a voz numa total permissividade dos acordes em relação às palavras pronunciadas, proporciona um espetáculo de rara beleza.
Novamente João demonstra sua admiração pelo conterrâneo Dorival Caymmi (representado por quatro músicas neste CD) dando uma interpretação a “Rosa Morena” que deve deixar perplexo o autor. O convite a “Rosa” para que ela retorne é de uma teatralidade monumental. João consegue ao mesmo tempo transmitir súplica e sedução, nesta linda canção romântica, usando os acordes menores para suplicar e os maiores para seduzir! Pode-se perceber aí o ator, o cantor e o instrumentista. A junção dessas três artes na interpretação faz de “Rosa Morena” uma das mais belas faixas do disco.
Temos ainda “Doralice” (ousadia máxima na divisão), “Málaga”, “Estate (cantadas em italiano), “O Pato”, “Desafinado”, “Chega de Saudade”, “Garota de Ipanema” (essa também uma descrição em 3ª dimensão; pode-se “ver” a famosa garota se aproximando: é uma escultura renascentista!). A regravação de peças já conhecidas leva o desavisado a pensar que João está se repetindo. Isso não existe. Se João Gilberto cantar dez vezes a mesma música em um mesmo show, ele o fará de forma diferente cada uma delas. “Live at Umbria Jazz”, repleto de sutilezas, evidencia de forma definitiva toda a genialidade do maior artista da música popular brasileira de todos os tempos.
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