As orgias sonoras de Miles
Arnaldo DeSouteiro
(artigo escrito em 31 de Outubro de 2002 e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa")
Uns dos cinco mais importantes artistas na história do jazz – em matéria de talento, criatividade, prestígio e popularidade -, o iconoclasta Miles Davis Evans (1926-1991), em estado de permanente evolução, nunca deixou de procurar novos caminhos para sua música. Sempre adorando desafios e inovações, correu todos os riscos possíveis e impossíveis, levando os puristas ao desespero. Principalmente ao estabelecer os mandamentos da “fusion-music”, então chamada de “jazz-rock” no início dos anos 70, matéria-prima de vários excelentes discos agora relançados pela Sony, através do selo Legacy dirigido por Seth Rothstein. Todos remasterizados em 24bits, trazendo novos textos assinados por sidemen como Bennie Maupin e Dave Liebman, além de farto material fotográfico.
São cinco CDs-duplos (!) e um simples (“A tribute to Jack Johnson”, trilha para um filme sobre o famoso boxer) de sua fase mais polêmica e instigante, marcada por levadas de rock, grooves funkyados, temperos brasileiros e orientais. Entre os outros trabalhos de estúdio estão “Get up with it” e “Big fun”, com as presenças de Hancock, Zawinul, Keith Jarrett, John McLaughlin, Ron Carter e Billy Cobham. Captados ao vivo, “Agharta” (no Japão) e “Dark Magus” (no Carnegie Hall, em NY) documentam alguns dos últimos concertos antes do trompetista entrar, em meados de 75, numa reclusão que duraria até 81. Mas o grande destaque é o inédito “It’s about that time”, ao vivo no Fillmore East em 1970, com um grupo formado por Chick Corea, Dave Holland, Jack DeJohnette, Airto e Wayne Shorter.
Trips em estúdio
Talvez um dos menos badalados ítens na vasta discografia de Miles, “A tribute to Jack Johnson” (52m32s) nasceu como trilha sonora de um documentário do cineasta William Clayton sobre o lendário campeão dos ringues no início do século, com quem Miles muito se identificava. Não apenas por adorar box e sentir-se vítima de discriminação racial. Mas também porque, segundo palavras do prório MD no texto do livreto, Jack, perseguido pela Ku Klux Klan, “vivia a mil por hora, adorava carros, só bebia champagne e tinha muitas mulheres, geralmente brancas”. Disposto a oferecer sua arte para reverenciar Johnson (falecido em 1946, aos 68 anos), entrou em estúdio acompanhado por Herbie Hancock, Michael Henderson, Steve Grossman, McLaughlin e Cobham, gravando duas longas faixas. Em 7 de abril de 70, a pensativa “Yesternow”, na qual o produtor Teo Macero inseriu trechos de “Shh/Peaceful”, gravada em 69 com Wayne Shorter & Tony Williams. Em 11 de novembro, deu o trabalho por concluído com a densíssima “Right off, alternando solos com e sem surdina, ouvindo-se a voz do ator Brock Peters no papel de Jack.
“Big fun” (73m56s;68m42s), originalmente lançado em 1974 como LP-duplo de capa psicodélica desenhada por Corky McKoy, reúne oito faixas gravadas entre novembro de 69 (“Great expectations” nasceu apenas três meses depois das célebres sessões de “Bitches brew”) e junho de 72 (“Ife”). Tem ainda “Go ahead John”, jam dedicada ao inglês McLaughlin, captada em março de 70. Em matéria de experimentação sonora, nada supera a lisérgica viagem de “Lonely fire”, com dois baixos (Dave Holland no acústico, Harvey Brooks no elétrico), duas baterias (Cobham e DeJohnette) e dois tecladistas atacando de Fender Rhodes (Chick Corea e Joe Zawinul, este último usando também um dinossáurico órgão Farfisa). Entrelaçando-se com o trompete do líder, estão o soprano de Wayne Shorter e o clarone de Bennie Maupin. Porém, a exótica sonoridade é determinada pela percussão de Airto em comunhão com os instrumentos indianos de Khalil Balakrishna. Nas quatro bonus-tracks (“Recollections”, “Trevere”, “Little blue frog”, “Yaphet”) adicionadas ao CD, rolam outras misturas imprevisíveis: berimbau e cítara, cuíca e tabla, pandeiro e tambura, num erótico clima de jardim das delícias.
Mais focado em riffs Hendrixianos de guitarra e linhas de baixo a la Sly Stone, “Get up with it” (60m01s/64m07s) abriga faixas que, apesar de gravadas em ocasiões diferentes, formam, assim como em “Big fun”, um todo bastante homogêneo. Da soturna atmosfera de “He loved him madly” - tributo ao então recém-falecido Duke Ellington, com a ficha técnica omitindo a informação de Miles tocando órgão - ao pique frenético de “Rated X” (inspirada nos filmes pornôs que Miles adorava ver enquanto amassava as namoradas – preferencialmente, duas ou três ao mesmo tempo), rolam infindáveis surpresas sonoras. Miles dá uma aula no uso de pedal wah-wah aplicado ao trompete em “Calypso Frelimo” e “Billy Preston” (homenagem a outro ídolo), deixa as congas de seu novo percussionista James Mtume estabelecerem a pulsação afro em “Mtume”, e junta os teclados de Hancock & Jarrett em “Honky tonk”. Ainda mais inesperados – para não dizer atípicos – são os temas “Maiysha” (de 74, com balanço de latin-bossa) e “Red China Blues” (de 72, destacando a gaita de Wally Chambers gemendo amparada por uma seção de metais comandada pelo arranjador Wade Marcus).
Jams ao vivo
“Agharta” (44m58s/51m54s), que durante muitos anos foi privilégio do mercado japonês, documenta o concerto realizado na tarde de 1º de fevereiro de 1975 no Osaka Festival Hall - o show apresentado naquela mesma noite saiu antes sob o nome de “Pangaea”. Como bem comenta o crítico Lee Jeske no livreto, as performances foram completamente diferentes em termos de clima, com um “mood” bem mais denso e pesadão na sessão noturna. A vespertina rolou mais “light”, porém não menos interessante. Ao contrário, exatamente pelo fato de ter sido uma rara atuação “light” na carreira do mito (“leve” para o padrão peso-fúria de Miles, vale frisar), talvez seja de maior interesse para análise e deleite dos fãs. E como uma análise detalhada se torna impossível nesse espaço, limitemo-nos apenas a recomendar que ninguém deixe de saborear os grooves hipnóticos armados por Michael Henderson (baixo elétrico Fender), Al Foster (bateria), Mtume (percussão), Pete Cosey & Reggie Lucas (guitarra), que fazem misérias nas longas jams de um “Prelude” que dura 33 minutos, e do mais longo “Interlude” (27 minutos) da história da música! Nos sopros, brilha o subvalorizado Sonny Fortune, revezando-se nos saxes alto & soprano, além da flauta utilizada na saborosa versão a la CTI de “Maiysha”, com riffs de guitarra claramente inspirados nas gravações de John Tropea com Eumir Deodato.
A usina sonora opera com força total no avassalador “Dark magus” (50m14s/50m51s), bendito fruto de uma exibição no Carnegie Hall, em New York, em 30 de março de 74. A bandaça contava então com dois saxofonistas (Dave Liebman & Azar Lawrence) e três guiarristas, com Dominique Gaumont somado aos não menos ferozes Cosey & Lucas. Músicos excepcionais que, por um desses mistérios aparentemente inexplicáveis, não obtiveram o merecido reconhecimento; se bem que Reggie Lucas pelo menos virou um produtor de renome na cena pop-black-dance, trabalhando até com Madonna. Na época de Miles, ele era um guitarrista lancinante, de fraseado rascante, sob medida para a sólida base (no estilo “Hendrix meets James Brown”) fornecida pelo baixista Michael Henderson (formado na “escola Motown”) e pelo batera Al Foster, um trator se comparado ao músico que hoje privilegia sutilezas & vassourinhas. Os títulos, aleatórios, servem apenas para dividir as longas seções improvisadas. Ou para confundir o consumidor, porque a segunda parte de “Tatu” é o tema “Calypso Frelimo” (de “Get up with it”), enquanto “Nne” baseia-se em “Ife” (de “Big fun”). Comentário irresistível: entre os compassos 133 e 137 de “Moja”, Miles reprisa o “lick” usado para iniciar seu solo na memorável gravação de “Walkin’” (clássico do hard-bop) feita em 61 no clube Blackhawk.
Ao sabor da mais pura criação espontânea flui a orgia sonora de “It’s about that time” (44m02s/46m14s), até então inédito. Trata-se do primeiro lançamento não-pirata de um show do super-sexteto que já estava sendo chamado de “The Great Lost Miles Davis Group”! Naquela noite de 7 de março de 1970, deixaram boquiaberta a turba que tinha ido a casa de shows Fillmore East (o “palácio do rock” dirigido pelo empresário Bill Graham) para curtir a Stevie Miller Blues Band e o grupo Crazy Horse, de Neil Young, atrações principais da noite. Miles, que vinha trocando os enfumaçados clubes de jazz por palcos maiores, e logo estaria atuando até em arenas e grandes festivais ao ar livre (como o da Ilha de Wight), deu um choque na platéia. Garotada privilegiada que nem em sonho imaginaria estar ouvindo, pela primeira vez, temas como “Spanish key”, “Miles runs the voodoo down” e a própria faixa-título do LP “Bitches Brew” (já gravado mas ainda não lançado), que mudaria para sempre o rumo do jazz.
Com acachapantes mudanças de climas, súbitos redirecionamentos e um sempre elevadíssimo nível de tesão & telepatia, Miles, Chick Corea (no Fender Rhodes repleto de distorções, claro), Dave Holland (tocando baixo acústico como se fosse um elétrico, fazendo o elétrico soar como um acústico), Jack DeJohnette (uma britadeira com swing), Airto (disparando a cuíca para atiçar Miles logo nos primeiros segundos do tema de abertura, “Directions”, e também na recriação de “Bitches brew”) e Wayne Shorter (em sua noite de despedida da banda, aproveitando para revisitar “Masqualero”, lançado no LP “Sorcerer”, em 62) barbarizam o tempo inteiro. Mais blá-blá-blá só iria atrasar o seu êxtase. Portanto, largue o jornal e corra para a importadora (real ou virtual) mais próxima. Sua alma será eternamente grata.
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