Monday, May 14, 2007

Jazz com pitadas de blues, rock, funk e até discoteca


Jazz com pitadas de blues, rock, funk e até discoteca
Arnaldo DeSouteiro

(artigo escrito em 15 de Agosto de 2002 e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa")

Agora que a dinastia Marsalis, com seus “young lions” de arrogância fascista e animação de coveiro, levou o mercado jazzístico a mergulhar em uma crise sem precedentes, as gravadoras americanas começam a procurar alternativas sonoras que voltem a atrair os consumidores. Já que nada de novo ainda surgiu, já que os EUA continuam se recusando a incorporar as inovações do dançante “nu jazz” europeu - e ninguém mais agüenta aquele som velho, chato, repetitivo, arrastado e sem criatividade dos pseudo neo-boppers -, o jeito é cavucar acervos em busca de material que represente exatamente o oposto do que os compradores agora rejeitam mais do que a candidatura do Garotinho e do Serra juntas! Não por acaso, depois de deixar o catálogo do selo CTI mofando durante anos no mercado americano (enquanto era relançado incessantemente na Europa e no Japão), a Sony resolveu redescobri-lo.

Em março deste ano, saiu uma louvável série de reedições, incensada pelos críticos do jornal New York Times e até mesmo pelos meninos “muderninhos” da revista pop Mojo. Mas que esta coluna comentou em furo mundial no dia 1º de abril; sem trote. Animada por tamanha repercussão, a Sony acaba de lançar um novo pacote, sob a supervisão de Seth Rothstein, e com a ajuda dos produtores Didier Deutsch & Jerry Rappapport. Desta vez, revivendo antológicos álbuns (alguns ótimos, outros excelentes) produzidos por Creed Taylor, entre 1970 e 76, para artistas como os guitarristas Kenny Burrell, Grant Green e George Benson, o trompetista Freddie Hubbard, o tecladista/arranjador Eumir Deodato e a cantora Esther Phillips. Todos trazendo a essência jazzística temperada por elementos do blues, do rock, do funk, e até da disco-music, no caso da Tia Esther.

Feras da guitarra

Odiado pelos puristas por ter enriquecido graças a seu talento multi-facetado (duplo pecado mortal para um jazzman “de verdade”, acusam os bobalhões da terceira-idade), George Benson encontra-se representado pelo CD “Bad Benson” (53m18s), gravado entre abril e junho de 74. Nada tão magistral quanto “White rabbit” (71), mas muito superior ao medíocre “Body talk” (73), já relançado em março. Boa parte do êxito cabe a Don Sebesky, responsável por arranjos impecáveis, usando apenas violoncelos – nada de violinos ou violas -, obtendo assim uma sonoridade bem “dark”. Na seção rítmica, a presença de Phil Upchurch, substituindo Earl Klugh, renovou o ânimo de Benson.

Além de atuar como guitarrista de base em quase todas as faixas (inclusive incitando improvisos supimpas de Benson e do pianista Kenny Barron, usando Fender Rhodes num dos melhores solos de sua vida, em “Take five”), Phil ataca de baixo elétrico na frenética “Full compass” em clima de trilha de “cop show”, e toca percussão em “My latin brother”, suas duas melhores composições. Uma terceira, a balada “No sooner said than done” perde longe para a comovente sutileza do genial Johnny Mandel em “Summer wishes, winter dreams”, apenas à base de guitarra, cellos & madeiras (flautas, clarinete e corne inglês). Três faixas extras completam o discaço: “Take the A train”, “From now on” (único numero de guitarra-solo) e a extensa “Serbian blue”, na qual Benson voa sobre a levada de Steve Gadd durante sedutores 13 minutos.

De atmosfera ainda mais “dark”, igualmente valendo-se apenas de cinco cellistas (entre eles, o mestre Alan Shulman, recém-falecido aos 78 anos) na seção de cordas, “God Bless The Child” (49m57s) entrou para a história como uma das obras-primas na discografia de Kenny Burrell. E, misteriosamente, foi seu único álbum para a CTI. Captado em abril e maio de 1971, com arranjos semi-soturnos de Sebesky, traz Kenny assessorado por Richard Wyands, Ron Carter, Billy Cobham, Freddie Hubbard e Ray Barretto. O flautista Hubert Laws tem participação especial na bluesy “Do what you gotta do”, enquanto o percussa Airto colore a exótica “Love is the answer”. Porém, os pontos altos são as cativantes performances nas baladas “A child is born” (Thad Jones) e “God bless the child” (Billie Holiday), que originalmente ocupavam o lado B do antigo LP. Esta reedição traz três bônus tracks: “Ballad of the sad young men”, “Lost in the stars” (números-solo combinando lirismo e sutileza) e um alternate take inédito de “A child is born”.

Outra fera da guitarra a gravar apenas um disco na CTI, Grant Green (1931-1979) nunca foi considerado um virtuose, mas conquistou fama e prestígio graças ao seu estilo, digamos, “simples & objetivo”, sempre temperando suas execuções com generosas pitadas de rhythm & blues, privilegiando improvisos em single-notes ao invés de optar por rebuscamentos harmônicos. Na verdade, “The main attraction” (37m46s) nasceu em março de 76 para o selo Kudu, subsidiário da CTI, e já havia sido relançado em CD no Japão. Mas, nesta primeira reedição americana, a Sony trocou o logotipo do Kudu pelo da CTI, alegando “questões de logística”. São apenas três longas faixas, com Grant adicionando seu toque mágico sobre vigorosas bases funky preparadas por David Matthews (valendo-se de sua experiência como arranjador de James Brown) e executadas por um timaço que inclui Hubert Laws (destaque no saltitante funkzak “Future feature”), Michael Brecker (abrasador no bluesão “Creature”) e o saudoso Don Grolnick, armador do riff de teclado que deu origem à faixa-título, uma jam de 19 minutos.

Sessões memoráveis

Disco que consagrou definitivamente Freddie Hubbard, “Red clay” (68m13s) mostra o trompetista reprocessando postulados do hard-bop com extrema personalidade. Em perfeita interação com Herbie Hancock, Ron Carter, Joe Henderson e um Lenny White de apenas 20 anos – mas que já tinha tocado com Miles no revolucionário “Bitches brew” – Freddie estraçalha em “The intrepid fox”, “Suíte sioux”, “Cold turkey” (tema de John Lennon, de título dúbio, lançado no LP “Live peace in Toronto, 1969” da Plastic Ono Band, seu grito de libertação dos Beatles) e “Delphia” (enternecida balada na qual Hancock passa do piano elétrico para o órgão Hammond, e Henderson troca o tenor pela flauta, duas informações omitidas na ficha técnica). Além, claro, da mais famosa composição de FH, “Red clay”, disponível tanto no registro de estúdio, de janeiro de 1970, como na inédita versão ao vivo (de 18 minutos!) captada durante concerto do grupo CTI All-Stars no Southgate Palace, em 19 de julho de 71. No auge da técnica, executando frases longuíssimas de tirar o fôlego do ouvinte, alcançando agudos inacreditáveis, Hubbard tem uma performance brilhante, dividindo solos com Stanley Turrentine e George Benson.

Item obrigatório em qualquer coleção de fusion, “Deodato 2” (48m31s) consolidou a posição do gênio brasileiro Eumir Deodato como um dos mais importantes nomes no efervescente cenário jazzístico do início dos anos 70. Após o mega-sucesso do LP “Prelude” e do single “Zarathustra/2001”, que vendeu mais de 5 milhões de cópias, o carioca de Laranjeiras voltou a galgar as paradas mundo afora com “Deodato 2”, puxado pela estupenda adaptação para “Rhapsody in blue” (1924), de Gershwin. As sessões realizadas entre abril e maio de 1973 renderam quatro outras soberbas faixas, resultando num álbum perfeito, irretocável, que lançou as hoje clássicas “Super strut” e “Skyscrapers”, além dos arranjos suntuosos para uma jóia do rock-progressivo (“Nights in white satin”, do Moody Blues, de 1967) e uma obra-prima do impressionismo (“Pavane pour une infante défunte”, criada por Ravel em 1899). Três faixas abaixo deste altíssimo padrão foram acrescentadas à reedição em CD: “Latin flute”, “Venus” e “Do it again” (Steely Dan), às quais Eumir não chegou a adicionar orquestra, tocando apenas com a base formada por Stanley Clarke, John Giulino, Billy Cobham, Rick Marotta, Rubens Bassini, John Tropea e Romeo Penque.

Quem também ajudou a encher o cofre da CTI/Kudu foi a enfant-terrible Esther Phillips (1935-1984). Depois de uma fase de moderado sucesso na Atlantic, ela assinou com o selo Kudu em 1971, lançando álbuns heterogêneos. Só explodiu no quinto disco, quando Creed Taylor encarregou o guitarrista Joe Beck de renovar a estética da veterana cantora. O resultado superou as expectativas, com a faixa-título de “What a diff’rence a day makes” (38m16s) estourando nas pistas de todo o planeta. Catapultada à condição de diva da dance-music, temporariamente competindo com Donna Summer e Gloria Gaynor, Esther alcançou uma glória sem precedentes em sua irregular carreira. Neste relançamento em CD, o hit de sua maior influência, Dinah Washington, que já tinha sido sucesso dos Dorsey Brothers (na verdade, uma versão de Stanley Adams para o bolero “Cuando vuelva a tu lado”, da mexicana Maria Grever) aparece tanto no arranjo integral como na versão editada para o compacto, deixando apenas um curto trecho do solo de David Sanborn no sax-alto. O cardápio inclui ainda recriações crepitantes de “One night affair” e “Mr. Magic” na voz inconfundível de uma verdadeira estilista.

Legendas:
“Esther Phillips: estouro nas pistas de dança em 1975”
“Deodato: recriando Gershwin, Ravel e Moody Blues”

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