Monday, May 14, 2007

Diana Krall: o melhor lançamento de 2002


O melhor lançamento do ano
Arnaldo DeSouteiro

(artigo escrito em 24 de Junho de 2002 e publicado no jornal "Tribuna da Imprensa")

Senhoras e senhores, não percam tempo. O melhor lançamento jazzístico de 2002 – quiçá o melhor lançamento entre todos os gêneros – já chegou às lojas. E desta vez ninguém precisa reclamar do preço cobrado pelas importadoras, porque a obra de arte em questão já está disponível em edição nacional, via ST2 (www.st2.com.br). O nome da jóia? “Diana Krall live in Paris”, também candidato ao título de melhor DVD de jazz desde a invenção deste formato. Ao longo de duas horas e dez minutos, a cantora canadense coloca em situação ridícula seus invejosos detratores, dando liretalmente um showzaço impecável e emocionante. Na realidade, arrepiante do início ao fim, com o talento da gata emoldurado por suntuosos arranjos de Claus Ogerman, Johnny Mandel e John Clayton.

Muita bobagem tem sido dita recentemente para desmerecer Diana Jean Krall, esta beldade canadense nascida em 16 de novembro de 1964 na pequena cidade de Nanaimo. Principalmente depois que deixou de ser uma “promessa” para se transformar numa das mais bem-sucedidas carreiras dos últimos tempos, alcançando a marca de dois milhões de cópias vendidas com seu CD “When I look in your eyes”, de 99, seguido pelo “The look of love”, do ano passado, que já bateu um milhão de exemplares. Este DVD primoroso serve agora para não deixar mais dúvida alguma acerca de seus méritos como cantora e pianista, que evoluiu uma barbaridade nos últimos cinco anos. Só não convém dizer que Diana chegou ao ápice porque, do jeito como tem progredido tão velozmente - inclusive entre a gravação de “The look of love” e a filmagem deste DVD - ela ainda pode vir a se superar.

Evolução impressionante

Por enquanto, “Live in Paris” basta para extasiar qualquer ser humano sem graves problemas de mau gosto, complexo de inferioridade ou feiura, e outras tristes mazelas psíquicas. E que ninguém mais cometa a imprudência de emitir qualquer opinião sobre Diana antes de contemplar este DVD. Porque, de fato, os primeiros discos (“Stepping out”, “Only trust your heart”) da louraça eram fracos, dando mesmo a impressão de que se tratava de mais uma “invenção” da indústria. Mas algum valor a moça devia ter – afinal, nomes como Ray Brown e Jimmy Rowles, dois de seus maiores mestres e incentivadores, não iriam comprometer suas reputações avalizando uma embusteira. Sem contar o apoio de Tommy LiPuma, veterano produtor, com fama de Midas, que nela apostava todas as fichas.

Vieram dois discos um pouco melhores, porém ainda irregulares, nos quais Diana reafirmava a paixão por Nat “King” Cole (“All for you”) e pelas musas Shirley Horn & Carmen McRae (“Love scenes”). Sua apresentação no Free Jazz Festival, em 96, foi constrangedora, prejudicada pela total inadequação do local (um galpão sem o menor tratamento acústico e ainda por cima desconfortável para o público, esprimido em cadeiras de botequim) ao repertório intimista escolhido para aquela apresentação com a formação de trio completada por Russell Malone (excelente guitarrista demitido da Verve na semana passada) e Ben Wolfe (atabalhoado baixista exibicionista, ruim desde a fase com o blefe Harry Connick Jr.). Salvou-se um ou outro número – “The gentle rain”, de Luiz Bonfá, por exemplo – mas a noitada não convenceu ninguém.

Eu mesmo estava quase desistindo de entender porque LiPuma continuava investindo rios de dinheiro na promoção da moça. Súbito, em meados de 99, apareceu o sensacional “When I look in your eyes”, valorizado pelas soberbas orquestrações de Johnny Mandel em seis faixas, incluindo as pérolas “Let’s face the music and dance” e “I’ve got you under my skin”, balizadas por uma sutil batida de bossa-nova. Resultado: no Grammy de 2000, a moça faturou o prêmio de “best jazz vocal performance” e o CD tornou-se o primeiro disco de jazz a ser indicado para “album of the year” nos últimos 20 anos! Nas faixas sem orquestra, Diana saiu-se igualmente bem, mostrando tremenda evolução como cantora e principalmente como pianista. Nem parecia a menina insegura daquele show no Free Jazz, de solos titubeantes e mal alinhavados. Os improvisos soavam agora irretocáveis, conclusivos, concisos. Restava, porém, a dúvida: seriam resultado de “truques” de estúdio, uma soma de pedaços emendados até formarem uma história musical de começo, meio e fim?

Os shows que posteriormente assisti em Londres e Los Angeles provaram que o progresso era verdadeiro. Diana estava cada vez melhor (além de mais bonita), a ponto de dobrar a resistência de Claus Ogerman, até então fazendo um jejum de vinte anos de música popular, inteiramente devotado à música clássica. Pois Claus aceitou fazer todas as orquestrações para o disco “The look of love”, lançado em 2001 com maciço investimento publicitário, chegando ao topo da parada de jazz da Billboard e faturando o Grammy de “best sound engineering” por conta do trabalho de Al Schmitt. Bem verdade que os duzentos mil dólares ofertados por Tommy LiPuma pesaram na decisão de Claus – mas é igualmente importante lembrar que quantias semelhantes lhe haviam sido oferecidas para projetos com Prince, Tony Bennett, Natalie Cole etc. Todas eles diplomaticamente recusados pelo monstro alemão.

Concerto magistral

Se “The look of love” não chegou a ser um disco perfeito, “Live in Paris” (captado durante o último show de uma temporada de três noites no Olympia, em dezembro último) alcança uma dimensão quase divina. Primeiro porque Diana está cantando mil vezes melhor do que no CD, dando aulas de divisão, entortando tudo sem descambar em momento algum para os histrionismos da invejosa (que papelão!) Dee Dee Bridgewater. Ao piano, nem se fala. A bela tá uma fera. Basta dizer que nenhum pianista – atenção! – nenhum pianista da cena atual poderia acompanha-la tão bem quanto ela própria. Solos exatos, sabiamente construidos com lógica, graça e emoção. Muita emoção, a ponto de comover seus próprios músicos acompanhantes. Um timaço, aliás: os frequentes colaboradores John Clayton (baixo), Jeff Hamilton (bateria, na melhor atuação de sua vida), John Pisano (violão, elegantérrimo como sempre), Anthony Wilson (guitarra, o “Barney Kessel do terceiro milênio”, na falta provisória de melhor definição) e Paulinho da Costa (percussão discretíssima).

Somados, claro, aos metais da Paris Jazz Big Band e às cordas, trompas e madeiras da Orchestre Symphonique Europeen, sob a regência do craque neozelandês Alan Broadbent, professor de Diana (harmonia & contraponto) nos idos de 84. Seis arranjos são de Claus Ogerman, mas o astro só entra em cena na 13ª faixa, aos 76 minutos, para reger apenas duas músicas: “’S wonderful” (basicamente o mesmo score preparado para o histórico “Amoroso” de João Gilberto, em 77, com Hamilton combinando vassoura no prato e baqueta no aro da caixa, reverenciando o estilo patenteado por Milton Banana e Dom Um) e “Love letters”, com direito a uma coda de inebriante beleza, e Diana iniciando seu solo citando “Mona Lisa”. Ver Claus regendo com as mãos – dispensando a baqueta usada por Alan – é uma experiência única, a contemplação de um gênio em ação, comandando a natureza dos sons, explorando nuances e dinâmicas de modo inigualável. Ao final de “Love letters”, após um dos muitos solos magistrais de Diana, ele parece pedir silêncio à orquestra, e olha para o alto como se estivesse rezando, conversando com Deus. E provavelmente estava mesmo.

Àquela altura, a platéia já se encontrava hipnotizada, embevecida por conta das performances nas baladas “Maybe you’ll be there”, um dos grandes momentos de Anthony Wilson, e “I get along without you very well” (outra orquestração celestial de Ogerman, com as quatro trompas alcochoando o mar de violinos, violas & cellos), intercaladas com números de intenso swing. Diana começa logo arrepiando com um piano fumegante em “I love being here with you”. Faz intro de baixo & voz em “All or nothing at all”, e se omite do piano durante o primeiro “chorus” do solo de Wilson a la Kenny Burrell, com Hamilton dando um show de vassourinhas. Depois, sabendo a hora certa de colocar e tirar a mão do piano, alinhava o segundo “chorus” do guitarrista, agora com Jeff nas baquetas. Não precisava fazer mais nada, mas parte para um solo modelar em matéria de lógica arquitetônica, fechando a música com um tempero latino fornecido pelas congas & bongôs.

Na terceira música, “Let’s fall in love”, em delicioso andamento médio, quase um “fox”, finalmente aparece a orquestra, com o arranjo aludindo à antiga sonoridade de George Shearing através de passagens com piano, guitarra e vibrafone. Segue-se “The look of love”, uma das faixas menos interessantes do disco de estúdio. Ao vivo, entretanto, em clima de sambolero, Diana sai-se muito melhor, alongando frases, dando uma aula de divisão, explorando os registros graves, e, como tiro de misericórdia, fulmimando o público com outro impecável solo de piano – no CD rola apenas um simplório esboço de solo. A banda atinge o máximo de interação em “Deed I do”, na qual a louraça deixa de lado o toque econômico, na base de “single notes”, para esbanjar balanço em um improviso construido em blocos de acordes, reprocessando influências de Waller, Cole e até Peterson, mas sem imitar ninguém. A câmera esperta dá um close no pé direito da musa, marcando o tempo com um salto fino de 7cm, de provocar taquicardia até no papa.

Prossegue barbarizado em “Devil may care” (momento máximo da simbiose interna da porção pianista com a porção cantora), “Cry me a river” (também com rendimento muito superior do que no CD), “I’ve got you under my skin” (no renovador arranjo de Mandel, clarinetes & flautas somados com extremo requinte), “East of the sun” (ótimo solo do baixista Clayton usando o arco) e “I don’t know enough about you” (extraordinária intro de piano-solo). No último bis, dispensa qualquer aparato para encarar sozinha “A case of you”, de Joni Mitchell. Dirigido por David Barnard, com a produção assinada pelos compadres Tommy LiPuma & Al Schmitt (responsável pela inacreditável qualidade de som), o DVD traz ainda os videoclips das músicas “Let’s face the music and dance” e “The look of love”, e flagrantes dos ensaios – Pisano paquerando discretamente a harpista, Wilson admirando uma linda violinista, e Ogerman dando dicas a Paulinho enquanto contempla o arranjo de Mandel & Clayton para “Do it again”, antes de subir ao pódio para reger “Love letters”. O supra-sumo da elegância.

Bem-nascida, loura-inteligente, jovem, bela, culta, charmosa, refinada, sensual, hiper-talentosa, Diana vem despertando imensa ira nos complexados puristas que não admitem uma jazzwoman para eles tão fora do “perfil” de uma cantora de jazz – figuras que deveriam ser sempre balofas, idosas, repetidoras dos mesmos scats cheios de clichês, pobres, negras (sim, depois da era Marsalis o racismo voltou ao jazz, agora contra os brancos!), bêbadas e, de preferência, com um passado de promiscuidade sexual. Se você não é tolo para acreditar nessas baboseiras, corra até a loja mais próxima. E seja feliz!

Sugestões para as legendas:
“Diana Krall: vencedora do Grammy, melhor cantora de jazz do mundo segundo os leitores da Down Beat, e três milhões de discos vendidos”

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