O primeiro Rio Montreux Jazz Festival chegou ao fim. Infelizmente. Durante quatro dias, um (re)canto do Rio – o Pier Mauá – se transformou num local representativo das qualidades que fizeram a cidade ser chamada de maravilhosa. O Rio, ali, voltou a ser um local onde reinaram a cordialidade, a segurança, a amabilidade, a cultura, o lazer. E onde reinou a música, obviamente. Em altas doses. Retratando uma diversidade condizente com a fama do Montreux Jazz Festival suíço, embora isso não seja de agrado dos chatonildos puristas e tradicionalistas.
Com a expertise de quem programa a noite brasileira de Montreux há décadas, Mazzola montou um elenco que atraiu não apenas os jazzófilos ardorosos, mas também os simpatizantes do gênero e seus influentes afluentes. Encaixou bossa nova, MPB, rock e r&b num cardápio tão variado quanto apetitoso. Uma decisão fundamental para o tremendo sucesso do evento, organizado & executado com admirável competência em todos os quesitos.
Seguranças gentis, banheiros químicos mantidos em condições satisfatórias de uso, quantidade ideal de ótimos food trucks e bares - muitos bares! -, dentro e fora dos “palcos” fechados; mas sem nenhum caso explícito de exagero alcoólico, deve-se frisar. Tudo isso num cenário apaixonante. Quão frequentemente o respeitável público carioca se depara com um “tratamento” desses em grandes eventos? Não foi somente um Festival de música, mas também de civilidade. O público atraído pela excelente divulgação na imprensa e redes sociais, não se decepcionou com o que encontrou. Muito pelo contrário. São Pedro também ajudou: nenhuma gota de chuva em noites de clima agradabilíssimo. Nada flopou, tudo deu crush.
Como escrevi ontem, em uma das dezenas de postagens no Facebook sobre o Festival: “Último dia de um evento maravilhoso no Rio de Janeiro: Rio Montreux Jazz Festival. Lotado todas as noites! Se há bons eventos, os patrocinadores se interessam, há geração de empregos, as pessoas saem de casa, prestigiam, consomem, se divertem. O Stanley Clarke compartilha fotos tiradas pelos fãs, o Paulinho da Costa canta ‘Toledo Bagel’ especialmente para você ao sair do camarim, a gente reencontra amigos queridos (Wayner Nascimento, Red Sullivan e até o ídolo do Stanley, Jorge Oscar), desfruta do X-Belga, toma um bom vinho ou uma cerveja gelada, revê antigas namoradas desfilando com os atuais companheiros e fica feliz em ver que tomaram um novo rumo. É preciso fazer acontecer e aí a fila e a vida andam, a roda da economia gira. Reclame menos, produza mais!”
A música? Ah, sim. Para quem acompanhou quase todos os shows nos três palcos (batizados Ary Barroso, Tom Jobim e Villa-Lobos) montados no Pier Mauá – vários outros shows gratuitos aconteceram em pontos de Ipanema, Tijuca, Largo do Machado e Madureira –, a alma está lavada e enxaguada. Na primeira noite, pontificaram Diego Figueiredo (seguindo a linha evolutiva de Baden Powell, liderando um grupo abrasador com destaque para o baixista Eduardo Machado), Amaro Freitas, Maria Rita cantando lindamente com o Quarteto Jobim, Steve Vai estraçalhando com canjas virtuais (Joe Satriani, Mike Petrucci) e presenciais (Andreas Kisser), e principalmente um tal de Al Di Meola, que ofereceu um concerto sublime, marcado pela combinação de influências da música flamenca (fruto da longa convivência com o saudoso Paco de Lucia) e do nuevo tango criado por Astor Piazzolla.
Ao lado do pianista cubano – radicado em Miami – Kemuel Roig e do acordeonista italiano Fausto Beccalossi, Di Meola desta feita dispensou a guitarra, concentrando-se no violão. Um nível impressionante de virtuosismo, que incautos às vezes confundem com exibicionismo. Mostrou vários temas de discos recentes, mas no bis não se furtou a relembrar a mágica “Mediterranean Sundance”, originalmente gravada em duo com Paco no álbum “Elegant Gypsy”, um divisor de águas em sua carreira. Antes, saiu do palco para buscar o celular no camarim, justificando que precisava registrar e postar aquele momento. Ao final do recital, surpreendeu a todos aparecendo para autografar CDs e vinis vendidos por membros do seu staff. Conversou e posou para fotos com fãs que vieram – conforme ouvi nas conversas – até de cidades do interior de São Paulo, Minas Gerais e Bahia! Numa quinta-feira! Não se constrói um “following” desses sem motivo. Por isso, antecipadamente agradeceu ainda no palco: “thanks for keeping the attention for many generations”.
Na sexta-feira, me surpreendi com o fenomenal jovem guitarrista brasiliense Pedro Martins, que já abriu estraçalhando com “Olhos Nos Olhos” de Chico Buarque, e seguiu firme – ainda que confessadamente tímido no palco – em temas próprios e de Pat Metheny (“James”), com destaque para o baixista Pipoquinha, de impressionante fluência nos solos. Ouvi muitos elogios também às apresentações do grupo Choro Na Rua e de Yamandu Costa com a orquestra Camerata Jovem do Rio de Janeiro.
Um amigo de longa data, Stanley Clarke, simplesmente um dos maiores baixistas da história da música, fechou a minha noite com uma performance monumental. Liderou um quinteto completado pelos ultra-extraordinários – sim, é importante usar todos os adjetivos possíveis nessa hora – Beka Gochiashvil (pianista nascido na República da Geórgia, pequeno país na Eurásia que já foi parte da União Soviética), Cameron Graves (teclados), o afegão Salar Nader (tabla), Shariq Tucker (endiabrado baterista a quem Stanley se refere como “o espírito do grupo”) e Evan Garr (violinista a ele recomendado por ninguém menos que Jean-Luc Ponty).
Stanley abriu o show com um samba de George Duke, “Brazilian Love Affair”, em um arranjo de mais de 20 minutos. Não apenas os solos impressionaram, mas também a coesão, a energia e o swing da banda, a interação telepática. Em seguida, um tema belíssimo de Joe Henderson, “Black Narcissus”. No bis, é claro, “School Days”, quando trocou o baixo acústico pelo elétrico. Atingiu uma dimensão sobre-humana.
Ovacionado, estava feliz da vida no camarim. Recebeu amigos brasileiros, como o baixista Jorge Oscar e o artista gráfico Wayner Nascimento, a quem mostrou um vídeo no YouTube no qual toca obras de Bach, conversou sobre modelos de instrumento (“viajo agora levando um baixo fabricado na China, porque todos os meus melhores baixos foram danificados em viagens”, revelou), recordou a amizade com Luiz Bonfá (com quem gravou o cultuado álbum “Jacarandá”) e ficou pasmo quando relembrei a data de sua primeira vinda ao Brasil, em 1980, para um show com uma formação de all-stars – George Duke, Ndugu, Airto, Raul de Souza e Roland Bautista – no Maracanãzinho. “Estou ficando velho”, disse, pensativo. Está, mas tocando cada vez melhor.
O violinista Ricardo Herz abriu a programação de sábado, seguido pelo encontro do bandolinista virtuose Hamilton de Holanda com Paulinho da Costa, mestre da percussão radicado desde 1973 nos EUA, onde gravou com os maiores nomes do jazz e do pop, incluindo Michael Jackson (sim, no “Thriller” e também em “Off The Wall” e “Bad”). No repertório - após vários temas de Hamilton valorizados pelas atuações de Thiago Espírito Santo, Daniel Santiago e Edu Ribeiro - surgiram inusitadas releituras de sucessos aos quais o genial percussionista adicionou um tempero especial em gravações antológicas com Madonna (“La Isla Bonita”) e o grupo Earth, Wind & Fire (“Brazilian Rhyme”). Depois do show, Paulinho – a personificação da saudação “Salve Simpatia” – recebeu amigos na beira do palco, deu autógrafos e ainda cantou seu cult-hit “Toledo Bagel”, quando a ausência dessa música no repertório foi sentida pelos fãs.
Andreas Kisser, conhecido principalmente pelo trabalho com a banda Sepultura, colocou sua guitarra a serviço do heavy-metal, com direito a sucessos do Metallica e do Iron Maiden. O ensurdecedor volume de som chegou a provocar marolas. Já o bruxo genial Hermeto Pascoal provocou um terremoto de aplausos, sendo ovacionado ao entrar e sair do palco, quase emendando uma música na outra. Só deu para respirar quando tocou a singela balada “Montreux”, composta poucas horas antes de seu primeiro show na Suiça há apenas quarenta anos, em 1979. Corinne Bailey Rae, uma fofa, fechou a noite com um longo show que os fãs adoraram, e recebeu flores de Mazzola.
No domingo, Allyrio Mello, o encontro de Davi Moraes, Jr. Tolstoi e Pedro Baby no conceitual “A Guitarra e o Tambor”, e Carlos Malta com sua banda Pife Muderno precederam o Combo 66 de John Scofield, um quarteto que inclui Gerald Clayton (piano acústico e órgão Hammond), Vicente Archer (contrabaixo) e o infalível Bill Stewart (bateria). Usando e abusando de efeitos de distorção, mostrou temas próprios do disco mais recente e uma composição de título ousado, “F U Donald”, escrita por Stewart. Mas o ponto alto foi o bis: “But Beautiful”, balada escrita em 1947 por Jimmy Van Heusen, uma aula de delicadeza.
O encerramento do Festival aconteceu em clima de festa, no encontro de Ivan Lins com o pianista Chucho Valdés e o grupo Irakere, expoentes do jazz cubano. Surpreendentemente, em grande parte do show, Ivan dispensou a banda e soltou a voz em sucessivas baladas num set intimista apenas com teclado e o cello (às vezes guitarra) de Mario Manga. A música e o Rio precisam de muitas outras edições do Rio Montreux!
Let's have the Rio Montreux Jazz Festival #2 very soon!!
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