Monday, September 22, 2008

TI, Trio 3-D

Artigo escrito em 11 de setembro de 2008 para o jornal Tribuna da Imprensa; publicado em 22 de setembro de 2008

Bossa em terceira dimensão
Discos antológicos do Trio 3-D voltam às lojas
Arnaldo DeSouteiro


Fruto da “febre dos trios” característica da segunda fase da bossa nova, quando uma geração de instrumentistas da mais alta impedância e estirpe passou a reinar no Beco das Garrafas, em contraponto estético à leveza da bossa “peso-pluma” (palavras de Ruy Castro) de Tom Jobim, Luiz Bonfá & João Gilberto, o Trio 3-D representou um marco na carreira de seu fundador, o carioca Antonio Adolfo Maurity Sabóia. Agora, integrando a série “Bossa Nova 50 Anos”, lançada pela Sony BMG, os dois antológicos discos do grupo – “Tema 3-D” e “O Trio 3-D convida” – são reeditados em formato digipack.Talento precoce

Nascido em 10 de fevereiro de 1947, Antonio Adolfo estudou no Conservatório de Música Lorenzo Fernandes, passando a frequentar o Bottle’s Bar e o Little Club a partir de 1963 como integrante do grupo Samba Cinco. Chamado para atuar na banda de apoio do musical “Pobre menina rica”, de Carlos Lyra, durante a temporada no Teatro de Bolso, formou o Trio 3-D em dezembro de 63. Contratado pela RCA em 1964, o conjunto debutou no LP “Tema 3-D”, com Nelson Serra e Dom Um Romão revezando na bateria, o argentino Catcho Pomar domando o contrabaixo, o hoje esquecido Arisio dando canja no violão em todas as faixas, e Claudio Roditi – agora aclamado como um dos melhores trompetistas do mundo – entrando pela primeira vez em um estúdio de gravação.

Na provecta idade de 17 anos (a mesma de Antonio Adolfo, vale frisar), e então identificado apenas como “Claudinho – pistom” na ridícula ficha técnica da contracapa, Roditi atua em três músicas: “O amor em paz”, “Manhã sem você” e “Clouds” (Nuvens), talvez a obra-prima de Durval Ferreira & Mauricio Einhorn. “Fiz um bom trabalho e achei que seria chamado para outros projetos. Mas, para meu desapontamento, nem mesmo o Adolfo voltou a me chamar depois do lançamento do disco”, comenta Claudio. “É marcante a presença do grande baterista Dom Um Romão, que substitui o titular em algumas faixas, por um prosaico motivo: Nelsinho estava servindo ao "glorioso" Exército Nacional e não foi liberado para as gravações naquelas datas, no início dos anos de chumbo”, esclarece Carlos Braga, que volta e meia era chamado para substituir os baixistas oficiais do Trio em alguns shows.

Na época da primeira reedição, em 2001, na série “RCA 100 anos de música”, o jornalista Paulo Roberto Pires sentenciou: “Neste lote de relançamentos, o modelo mais clássico e também menos conhecido do trio é o excelente 3-D. “Tema” esbanja vitalidade em 12 faixas rigorosamente incendiárias que envelheceram rigorosamente nada – com exceção dos vocais de Cacho em “O amor em paz” e “Fly me to the moon”, mas aí os tropeços vão para a conta de uma doce nostalgia de músicos “da noite”. O repertório é o padrão para os grupos da época: standards da bossa nova (“Garota de Ipanema”, “ Consolação”, “A morte de um deus de sal”, “Samba de uma nota só”) alinhadas com músicas próprias (“Tema 3-D”) ou de outros grupos instrumentais que se tornariam, elas próprias, clássicos do samba-jazz”.
Ampliando horizontes
No segundo disco para a RCA, “O Trio 3-D convida”, lançado em abril de 1965, Adolfo ampliou a fórmula do LP anterior, convocando sete feras para contribuições especiais. Outro talento precoce, Eumir Deodato, já com curriculo de veterano aos 22 anos, assinou brilhantes arranjos para “Só tinha de ser com você” e “Peter samba”, empregando um afiadíssimo naipe de sopros formado, simplesmente, pelos dois melhores trombonistas na história da música brasileira - Edson Maciel e Raul de Souza - e por três dos nossos melhores saxofonistas, João Theodoro “JT” Meirelles, Paulo Moura e Jorge Ferreira da Silva, o Jorginho, nosso Paul Desmond, inexplicavelmente omitido dos créditos e do texto original de contracapa, assinado pelo produtor Roberto Jorge.
O contrabaixo foi entregue ao niteroiense Carlos Monjardim, ainda hoje ativo na noite paulistana, parente distante da cantora Maysa, sideman de Wilson Simonal nos tempos do Top Club, uma boate situada na praça do Lido. E a bateria ficou a cargo de Nelson Serra de Castro, carioca que, depois do 3D, trabalhou ao lado de Dom Salvador (piano) e Manuel Gusmão (baixo) no trio que acompanhava Elis Regina em programas dirigidos por Carlos Manga na TV Excelsior. Mais tarde, atuou na França com Meirelles, Fernando Martins e Edson Lobo. Tocava com Osmar Milito na casa noturna 706 quando, vítima de um desastre de motocicleta, faleceu prematuramente em fins dos anos 70.
Nas primeiras seis faixas (que formavam o “lado A” do LP) atua apenas o trio. A faixa de abertura, “Água de beber” (Jobim), tratada de forma grandiloquente em rebuscado arranjo, com várias alternâncias de andamento, deixa transparecer a nítida influência do Zimbo Trio, surgido um ano antes em São Paulo. Não menos intrincado, o tratamento dispensado a “My heart stood still”, standard de Richard Rodgers & Lorenz Hart, popularizado por jazzistas do porte de Bill Evans, Chet Baker & Dave Brubeck, também passa por diferentes moods. Depois de uma longa introdução, com Monjardim usando o arco e Nelson Serra aderindo às baquetas de feltro, o trio mergulha num balanço a mil por hora, permitindo a Adolfo demonstrar a apurada técnica lapidada nos estudos de piano clássico. Ecos de Hamilton Godoy e também de Oscar Peterson voltam a se manifestar na versão de “Reza”, de Edu Lobo, abrigando criativa performance do baixista Monjardim.
Dois temas de Marcos Valle ensejam performances irretocáveis: a bossa-balada “Preciso aprender a ser só”, acelerada na medida certa para escapar do romantismo meloso, e o samba “Batucada surgiu” (redescoberto por DJs da cena dancefloor-jazz depois da gravação de Towa Tei no “Future Listening!” de 95), ralentado e revirado harmonicamente no melhor arranjo de Adolfo no disco. Igualmente arrojada e surpreendente, a recriação de “Tamanco no samba” - gravado pelo Tamba 4 como “Samba blim” - confirma as excepcionais qualidades do líder como arranjador. O tema de Orlandivo, volta e meia tratado, inclusive pelo próprio autor, como sambinha corriqueiro, se transforma em samba-jazz de alta densidade, abrigando evoluções poliritmicas de Nelson Serra a la Elvin Jones.
Solos inspirados
Os convidados surgem nas faixas correspondentes ao “lado B”. Edson Maciel desliza seu trombone de vara, pela bela melodia de “Minha namorada” (Carlos Lyra), em atmosfera de intenso lirismo mas nada açucarada, enquanto Raul de Souza, que três meses antes havia lançado seu disco-solo “À vontade mesmo” pela RCA, conta “um, dois, três” antes de esbaldar-se no trombone de válvula em “Bye bye blackbird”, aprontando solo de estonteante fluência. Falecido em junho de 2008, aos 67 anos, J.T. Meirelles (líder do Copa 5) mostra sua classe no sax-tenor no sambop “Tema 3-D”, única composição de Adolfo incluida no repertório. E Paulo Moura, no sax-alto, destrincha “O passarinho”, obscura parceria de Chico Feitosa & Lula Freire, encaixando explícita referência a “Take five”.
A constelação de astros aparece reunida em duas faixas, cujos arranjos foram sabiamente confiados a Eumir Deodato: “Só tinha de ser com você” (o tema de Jobim gravado um ano antes por Eumir, em clima bem mais dark, em seu LP de estréia, “Inútil paisagem”, e por ele novamente regravado para a trilha do filme “Bossa nova” em 1999), e “Peter samba”, swingada colaboração de Durval Ferreira & Mauricio Einhorn. Graças a genialidade de Eumir na arte da orquestração, o quarteto de sopros soa como uma big-band! Sequência dos solos: Maciel, Moura, Raulzinho, Meirelles e Adolfo.
Grafado na capa como 3-D Trio, o grupo participou em outubro de 65, dividindo o palco com Pedrinho Mattar, Jongo Trio e Gilberto Gil, do “4º Festival do balança – o maior som universitário do Brasil”, lançado pela RCA em 66. Ainda na RCA, acompanharam de Eliana Pittman (“Minha melhor melodia”) a Wilson Miranda (“Tempo novo”), mas obtiveram melhor resultado no hoje esquecido “A 3ª dimensão de Lennie Dale com o Trio 3-D” para o selo Elenco, também em 66, com os novos integrantes Sergio Barroso (baixo) e Chico Batera.

Pouco depois, Novelli passou a ser o baixista, e Vitor Manga, o baterista. Alterando mais uma vez o nome, desta vez para Conjunto 3D, fazendo um som bem nos moldes do “Brasil 66” de Sergio Mendes, saiu em 1967 o álbum “Muito na onda” (Copacabana), que marcou a estréia discográfica do guitarrista Helio Delmiro, acoplado à base formada por Adolfo, Manuel Gusmão no baixo e Nelson Serra de volta à bateria, e às vozes de Beth Carvalho & Eduardo Conde.
Em 1968, ainda com o 3-D, o pianista marcou presença no LP “Isto é musicanossa!”, do selo Rozenblit, ao lado de Mario Telles, Johnny Alf, Gaya, Menescal e o Sexteto Contraponto. Aderiu à Turma da Pilantragem, comandando o grupo Antonio Adolfo & Asseclas Musicais nos três discos que o movimento liderado por Carlos Imperial, Wilson Simonal e Nonato Buzar gravou para a Polydor entre 68 e 69. Logo depois, Adolfo obteve sucesso comercial ainda maior com seu grupo A Brazuca, gravando dois LPs para a Odeon, faturando prêmios em festivais, e emplacando sucessivos hits em parceria com Tibério Gaspar como “Sá Marina” (sucesso internacional sob o título “Pretty world” graças a Sergio Mendes), “Juliana”, Teletema” e “BR-3”.
Continuou trilhando peculiar caminho pela MPB nas três últimas décadas, tornando-se um dos pioneiros na luta pela abertura de mercado para os discos independentes (a partir do “Feito em casa”, de 77, seguido por “Encontro musical” e “Viralata”), desenvolvendo sólido trabalhado como educador (inclusive no exterior, como membro da IAJE), e dedicando-se às releituras das obras de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e João Pernambuco. Mas jamais retornando à estética bossanovista do Trio 3-D. Motivo extra para que os novos relançamentos deste discos singulares sejam amplamente celebrados.
(ps: por "coincidência" ou sincronicidade, nesta semana em que o artigo está sendo publicado, recebi a notícia de que Antonio Adolfo estará se apresentando no Brasil, na casa noturna "Mistura Fina" (Rio de Janeiro), revivendo o Trio 3-D com Sergio Barroso e Chico Batera.

Legendas:
“Tema 3-D”: disco de estréia de Antonio Adolfo em 1964, aos 17 anos
“O Trio 3-D convida”: arranjos ousados e solos notáveis

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