Adeus a feras da guitarra
Joe Beck, Hiram Bullock e George Russell deixam vasto legado
Arnaldo DeSouteiro
Digo sempre que não gosto nadinha de escrever artigos que pareçam obituários. Prefiro fazer os registros apenas no blog. Mas, às vezes, torna-se inevitável. Lembro de exceções para artistas com os quais tive grande ligação espiritual: Laurindo Almeida, Bobby Scott, Gaya, Dom Um Romão, Zé Bodega, Juarez Araujo, Michael Brecker e Joe Zawinul, entre outros. Agora, torna-se impossível escapar do impacto de algumas das perdas do mês passado.
No intervalo de apenas uma semana, lá se foram Hiram Bullock (no dia 25 de julho, aos 52 anos), Joe Beck (dia 22, aos 65) e George Russell (dia 19, aos 89). Todos eles guitarristas que faziam parte do meu mundo musical desde a infância. Disseram-me que suas mortes passaram em branco pela imprensa brasileira, geralmente sensível somente a artistas de maior ibope como Isaac Hayes e Johnny Griffin. Então, mais uma razão para quebrar a regra.
Além de serem guitarristas, Bullock, Beck e Russell possuem, em comum, o fato de nunca terem alcançado a popularidade de um Mike Stern, de um Stanley Jordan, de um Earl Klugh. Talento não lhes faltava. Mas também não viveram à margem do “mercadão”. Russell talvez tenha sido o mais low-profile de todos, mas por opção. Até porque, depois de um período de grande atividade nos estúdios de Los Angeles, dedicou-se prioritariamente à carreira de, vejam que ironia!, “record promoter”. Vivendo em New York, Bullock e Beck fizeram por merecer, mais ainda, os rótulos de “músicos de estúdio” – porque gravaram muitíssimo – e “músicos dos músicos”, por serem admirados pelos colegas.
Aliás, “admirados” é pouco. Eram amados pelos companheiros de gravina, figurando, há décadas, entre os “studio cats” mais solicitados de NY. Transcenderam a fronteira jazzística, obtendo grande destaque no pop. Mais um motivo para serem odiados pelos críticos puristas (argh!) que defendem a teoria absurda de que “músico sério”, além de ser preconceituoso, deve viver infeliz, na pobreza, desprezado por gravadoras e, se possível, morrer passando fome.
A pegada de Beck
Dos três, o primeiro que “conheci” foi Joe Beck. Tinha eu 11 anos de idade quando, em 1974, comprei “Penny arcade”, discaço de Joe Farrell para a CTI. Beck era o autor da faixa-título e arrasava em todo o LP, inclusive na versão jazzificada de “Too high”, de Stevie Wonder, inspiração fundamental para que eu selecionasse a música ao produzir, trinta e dois anos depois, o CD “Opus samba”, do Fabio Fonseca Trio. Na seqüência adquiri outros vinis de Farrell marcados pela presença de Beck (“Upon this rock”, “Canned funk”) e comecei a prestar mais atenção nas participações do guitarrista em dezenas de outros discos, como “Power of soul”, de Idris Muhammad.
Meses depois fui atingido pela recriação “disco” de Esther Phillips para “What a diff’rence a day makes”. A gravação, lançada lá no Brasil pela Top Tape, não chegou a estourar no eterno “país do futuro”, ao contrário do que aconteceu no resto do “mundo decadente”, mas tocou bastante na Rádio Mundial-AM. Mesma emissora que já tinha me apresentado “2001” (Deodato), “Rio” (Dom Salvador & Abolição) e “Il Guarany” (Azymuth disfarçado de Alan & His Orchestra). Neste sentido, a Mundial foi minha escola primária, depois do jardim da infância cursado na Tamoio (com os professores Mancini, Legrand e Francis Lai) e do primeiro grau na JB-AM, onde Simon Khoury programava Airto, Tamba Trio e Mario Castro-Neves da manhã à noite.
Pois bem. Ao comprar o LP de Esther Phillips, descobri a dimensão do talento de Joe Beck, que havia feito a excelente orquestração. Não somente daquele hit, mas de todo o disco, atuando também como regente. Pois, até então, para mim ele era apenas um excelente guitarrista. E como, naquela época, eu estava apaixonado por Gaya, Deodato, Legrand, Ogerman e Sebesky, estudando orquestração através dos trabalhos desses mestres - enquanto lia “Tratado de harmonia”, de Rimsky-Korsakoff, e o “Curso de instrumentação” de José Siqueira – minha admiração por Joe duplicou. Inclusive porque ele se aperfeiçoou ainda mais, como arranjador, em “For all we know”, o segundo encontro com Esther.
Comprei a edição importada de “Beck”, seu LP-solo no selo Kudu, embalado pela capa psicodélica de Abdul Mati Klarwein (o mesmo de “Bitches brew” de Miles Davis) com scores assinados por Sebesky, e jamais poderia imaginar que, em 2001, estaria produzindo o relançamento em CD daquele disco no Japão, fazendo a remasterização digital com as fitas originais nas minhas mãos, restaurando a mixagem original de Van Gelder destruida na reedição americana da CBS. A cada novo LP, mais o talento do guitarrista me fascinava, com atuações faiscantes em álbuns de Sebesky (“The rape of el morro”), Woody Herman (o Grammyado “La Fiesta”), Gil Evans (“Where flamingos fly”, tocando mandolin em “El matador” de Kenny Dorham) e no “Michel Legrand & Friends” (ao vivo no St. Regis Maisonette, de NY, em 75).
Talento versátil
Informações básicas: nascido em 29 de julho de 1945, na Philadelphia, Beck debutou no grupo de Paul Winter em 1964. Tocou com Gary McFarland, Charles Lloyd e Chico Hamilton. Foi o primeiro guitarrista a gravar com Miles Davis (em 1967, na música “Circle in the round”, lançada somente em 1979 na antologia homônima). Gravou com cantores de todos os estilos – de Sinatra a James Brown, passando por Paul Simon, Gloria Gaynor e Helen Merrill, no derradeiro reencontro de Helen com Gil Evans em 1987, no CD “Collaboration”. Fez as primeiras sessões para Creed Taylor em 1968 acompanhando a dupla J.J. Johnson & Kai Winding (“Betwixt & between”) e Paul Desmond (no belíssimo “Summertime”, tocando violão no arranjo bossa nova para “Struttin’ with some barbecue”, de Louis Armstrong, que inclui no volume inaugural da série “A trip to Brazil” em 1998).
Participou dos dois primeiros LPs de Dom Um Romão para o selo Muse e, quando a pressão do trabalho tornava-se sufocante, Beck dava uma desaparecida e ficava retirado em sua fazenda. “Tirar leite de vaca é uma terapia insuperável”, brincava. Nos anos 80, começou a gravar uma série de ótimos CDs para o selo DMP: “Relaxin’” (uma sessão straight-ahead incluindo “Berimbau” de Baden Powell), “I won’t be back”, “Friends” (trazendo uma das melhores composições de Beck, “Golf swing”, na qual brilham Steve Gadd e Don Grolnick) e “The journey”, este já de 1991. Exatamente o ano em que finalmente conheci Beck pessoalmente em New York, onde passei os meses de abril e maio gravando dois discos enquanto o guitarrista fazia temporada no clube “Zanzibar”, liderando Ronnie Cuber, Lew Soloff, Mark Egan e Danny Gottlieb.
Os últimos trabalhos saíram pelos selos Venus - entre eles, “Brazilian dreamin’” (2006), para o mercado japonês, com “Ela é carioca”, “Felicidade”, “Falando de amor”, “Vivo sonhando” e “O grande amor” no repertório – e Whaling city, por onde foi lançado, em fevereiro deste ano, “Coincidence”, seu duo com John Abercrombie, que gerou uma excursão pela Europa em dezembro de 2007, antes de Beck sucumbir ao câncer de pulmão.
O furacão Bullock
As lembranças das noitadas no “Zanzibar & Grill” são inesquecíveis. Sempre que conseguia sair mais cedo do estúdio, dava uma passada rápida no Gorham Hotel (na Rua 55 com Broadway Avenue) para trocar de roupa e rumava para o clube, que ficava na Terceira Avenida entre as Ruas 36 e 37. Como a cozinha era ótima, aproveitava para jantar lá, entre os sets, conversando com os músicos e o proprietário, David Corsun. Foi lá também que conheci Hiram Bullock, atração freqüente da casa. Tanto que fez o show de encerramento do Zanzibar, um ano depois (mais tarde, a casa reabriria no Greenwich Village). Casa lotada, público em delírio. Bullock, um showman nato, só faltava subir pelas paredes.
Assisti várias apresentações dele com David Sanborn e a Gil Evans Orchestra. No “Sweet Basil” ele até se comportava. Mas em locais maiores era comum descer do palco e, com um cabo gigantesco, sair tocando a guitarra pelo meio da platéia. Lembro que, no fabuloso show com Gil Evans no Free Jazz de 1987, Hiram terminou seu solo empoleirado em um camarote no segundo andar do Teatro do Hotel Nacional. Em um laser-disc de Sanborn para a série “Purely music”, filmada na Alemanha, Bullock apronta a mesma doideira e termina o “Samba de uma nota só” praticamente no colo de uma espectadora.
Nada supera, porém, sua performance no vídeo “Love & happiness”, de 1986, com canções do álbum “Straight to the heart”, de Sanborn. Relançado em DVD em 2006, no Japão, traz David, Hiram, Marcus Miller, Don Grolnick e Buddy Williams arrepiando. Descalço, vestindo calça jeans e camiseta sem manga no estilo “mamãe sou forte”, Bullock finaliza seu segundo solo na faixa “Lisa” tocando guitarra entre as pernas de Sanborn! Estiloso, cheio de ginga, malhadaço, fazia o maior sucesso com as mulheres. Era uma criança grande. E um gentleman.
Trajetória brilhante
Nascido na cidade japonesa de Osaka, onde seu pai servia como militar, cresceu em Baltimore e foi colega de Pat Metheny e Jaco Pastorius na Universidade de Miami. Chegou em NY com a cantora Phyllis Hyman e logo causou furor. Gravou duas centenas de álbuns como sideman de Paul Simon, Billy Joel, Sting, Barbara Streisand, James Taylor, Chaka Khan, Michael Franks, Al Jarreau, Eddie Palmieri, e os grupos Steely Dan e Brecker Brothers, entre muitos outros. Entre os meus discos prediletos estão “Dune" (David Matthews), "Turn This Mutha Out" (Idris Muhammad), "Hanalei Bay" (Lew Soloff), "Carla" (Steve Swallow), "Night-Glo" (Carla Bley), "Something You Got" (Art Farmer & Yusef Lateef), "Killer Bees" (Airto), "All Around the Town" (Bob James) e "We Belong Together" (John Blair).
Fez parte das formações originais das bandas dos programas de TV “Late night with David Letterman” e “Saturday night live”. Como líder, lançou mais de uma dezena de discos – entre eles, “Carrasco” (1997), uma aventura pelo latin-jazz, com “Amazonas”, de João Donato, no repertório, e o mais recente “Too funky 2 ignore” (2006). A última turnê aconteceu com a orquestra de Gil Evans (agora liderada por Miles Evans, filho do arranjador), tendo tocado dia 13 de julho no “House of jazz” em Roma. Morreria doze dias depois, em NY.
Violão classudo
Outro gentleman, o violonista George Russell levou uma vida bem menos agitada. A única “confusão” girava em torno de seu nome, sendo frequentemente confundido com o revolucionário maestro e band-leader homônimo, criador do “Lydian concept”, e também com o baixista Russell George, volta e meia erroneamente identificado em contracapas como George Russell. Se usasse o nome completo, George Harrison Russell, talvez a situação piorasse, pois alguém certamente iria confundi-lo com o ex-Beatle.
Fui apresentado a seu trabalho por João Palma, que fez várias gravações com George nos anos 60. Algumas delas relançadas, em 1992, no CD “George Russell, his guitar and music”, com as presenças de Shelly Manne, Victor Feldman, Palma e outro brasileiro, José Soares, percussionista de Sergio Mendes na fase “Mas que nada” do Brasil 65. Influenciado por Laurindo Almeida e Luiz Bonfá, escreveu obras sinfônicas e peças para balé (destaque para “Birthstone suíte”). Acompanhou o grupo vocal The Bachelors e integrou a orquestra de Nelson Riddle nos anos 50 e 60, mas aos poucos foi se dedicando prioritariamente ao trabalho como publicitário nos selos Mercury, Capitol e Columbia, mantendo longa associação com Johnny Matthis. Viveu 89 anos. Bullock e Beck mereciam o mesmo.
Legendas:
“Joe Beck liderando seu grupo no clube Zanzibar, em Nova Iorque” (foto de Arnaldo DeSouteiro)
“Hiram Bullock em um de seus últimos shows”
No comments:
Post a Comment