Monday, October 1, 2007

Bill Evans (New Conversations) & Harry Lookofsky (Stringsville)

Virtuoses a serviço da emoção
Discos suntuosos de Bill Evans e Harry Lookofsky voltam ao mercado
Arnaldo DeSouteiro


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 20 de Setembro de 2007 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa" em 1º de Outubro de 2007

Quando criteriosamente escolhidas, e preparadas por experts, reedições podem ser bastante tentadoras. Uma via capaz de ser prazerosamente trafegável, em mão-dupla, por indústria e consumidores. Para as gravadoras representam lucro certo, considerando a relação custo-benefício. Para o distinto público é a oportunidade de readquirir, em CD, um antigo disco esquecido em vinil ou simplesmente desgastado pelo tempo. Ou até que, por algum motivo, nunca foi objeto de cobiça na época dos LPs mas que, agora, pode despertar interesse. Em uma recente safra de relançamentos, merecem especial destaque dois suntuosos (e esquecidos) trabalhos do pianista Bill Evans e do violinista Harry Lookofsky, virtuoses a serviço da emoção.


Lembranças do vinil

Na era do vinil, uma das coisas mais terríveis era degustar um trabalho de piano-solo, fosse de jazz ou música clássica. Na verdade, a audição de qualquer disco de um instrumento-solo era uma tortura, por causa dos chiados e estalos que a ausência de uma seção rítmica tornava indisfarçável. Mesmo o colecionador tomando cuidado máximo, os barulhinhos tendiam sempre a aumentar, pois a ação do tempo sobre os sulcos era implacável. Quando mais você gostava do disco, naturalmente mais o ouvia, e aí mais rápido era o desgaste. Algo agravado quando a prensagem já era de baixa qualidade, como acontecia com a maioria dos LPs fabricados no Brasil. E o que falar da progressiva perda de qualidade a cada faixa, que chegava a um ponto insuportável, inclusive de distorção, na última faixa de cada lado?

Por incrível que pareça, a qualidade das prensagens no Brasil caiu muito nos anos 70, e mais ainda na década seguinte, em comparação com os anos 60. Especialmente em fábricas como a Continental, que atendia a várias outras companhias, inclusive a Warner. Para os mais abonados, a solução era torrar a grana nos importados, uma opção salvadora que descobri na pré-adolescência, quando a minha mesada desaparecia no “triângulo das Bermudas” – formado pelas lojas Modern Sound, Billboard e Symphony na esquina das ruas Barata Ribeiro e Santa Clara, em Copacabana, um bairro que chegou a ter mais de cinquenta lojas de disco em meados dos anos 70. Hoje, não deve chegar a ter cinco.

Nirvana sonoro

A tal angústia provocada pelos álbuns de piano-solo me vitimou, por exemplo, quando Bill Evans lançou “New conversations”. Lembro de ter comprado o LP nacional em uma “lojinha” improvisada no foyer da Sala Cecília Meirelles, na noite do show do pianista em 1979. O disco era soberbo, mas a audição uma tortura. Por isso, um novo relançamento agora em CD, através da série Warner Bros Masters é um presente dos deuses. Sem estalos, sem chiadeira de fundo, sua contemplação leva o ouvinte ao nirvana. Gravado em 1978 – portanto 15 anos depois do igualmente maravilhoso “Conversations with myself” (Verve), idealizado por Creed Taylor, tendo proporcionando a Evans seu primeiro Grammy – “New conversations” foi esnobado pelos puristas (sempre eles...ô raça miserável...!), que não perdoaram Bill por ter utilizado piano elétrico; um instrumento por ele já aplicado em trabalhos anteriores como “From left to right”, do qual pesquei, por sugestão de Roberto Muggiati, a notável gravação de “The Dolphin” (tema de Luiz Eça) para o terceiro volume da série “A trip to Brazil” em 2002.

Steinway + Rhodes

Para os tradicionalistas, eternos chatos de plantão, o Fender Rhodes nunca passou de um brinquedo associado aos “fusionistas” que eles gostariam de exterminar da face da terra. Para Bill, e também para Gil Evans (que gravou uma de suas obras-primas, “Paris blues”, em duo com Steve Lacy, tocando Rhodes na maioria das faixas), era um instrumento como qualquer outro, cabendo então a pergunta: quem entende mais de música? Bill e Gil Evans ou os críticos que babam de ódio em suas fraldas geriátricas? Aliás, até Oscar Peterson e Count Basie tocaram Rhodes, e o produtor Norman Granz não estava apontando um revólver para suas cabeças.

Nos geniais arranjos arquitetados por Bill para “New conversations”, o Rhodes aparece entrelaçado, de forma sutil e engenhosa, a dois pianos acústicos em faixas sublimes como “Song for Helen” (dedicada à sua empresária Helen Keane), “For Nenette” (um afago musical em sua esposa) e “Maxinne” (uma linda valsa para sua filha adotiva). Estas três, sozinhas, já valeriam o disco. Mas Evans segue emocionando, seja ao sobrepor dois pianos acústicos em “After you” (Cole Porter) e “I love my wife” (o tema de Cy Coleman pelo qual se apaixonou após ouvir a gravação do amigo Tony Bennett), ao juntar um acústico e um elétrico em “Nobody else but me”, ou simplesmente ao limitar-se ao piano acústico-solo na indescritível recriação de “Reflections in D”, de Ellington, glorioso tema de encerramento. Vale ressaltar que esta nova reedição inglesa (muito superior à anterior, americana) vem em formato digipack, com as liner notes originais do historiador Nat Hentoff e um texto adiocional de Keith Shadwick.

Mestre do violino

Não menos louvável é o relançamento, via Collectables Records, nos EUA, de “Stringsville”, do superviolinista Harry Lookofsky. Originalmente gravado em 1958 sob a supervisão de Nesuhi Ertegun, e editado em 1960 pelo selo Atlantic, conta com arranjos do pianista Hank Jones e do trombonista Bob Brookmeyer, que participam juntamente com os baixistas Milt Hinton e Paul Chambers mais o lendário Elvin Jones, baterista em todas as faixas. No Japão, retorna ao mercado em 21 de novembro, via Warner, em formato "paper sleeve", parecendo um LP em miniatura, reproduzindo fielmente a capa do vinil.

Quando se fala em “jazz violin”, os nomes citados são sempre os mesmos: Grappelli, Joe Venuti, Stuff Smith, Johnny Frigo e os “jovens” Ponty, Didier Lockwood e Jerry Goodman. O mestre Lookofsky é sempre injustamente esquecido, assim como Svend Asmussen. Mas, pelo menos em termos de apuro técnico, Harry seja o melhor deles todos, embora certamente não o mais importante em termos históricos. Músico genial e de grande versatilidade, faleceu em 1998, aos 85 anos, ignorado pela crítica pseudo-especializada.

E que ninguém espere uma atuação "academicista", bem-comportada, de um "músico clássico" se esforçando para tocar jazz. Lookofsky desce o sarrafo e esbanja swing. Virtuose que integrou as Sinfônicas de Saint Louis e da NBC (sob a batuta de Toscanini), tinha o mesmo prazer em tocar o Concerto para violino e orquestra de Tchaikovsky ou hinos do bebop, estilo sobre o qual se debruçou com um afinco jamais demonstrado por nenhum outro violinista.

Por sinal, abre o disco com uma interpretação arrasadora para “’Round midnight” (Monk), e segue barbarizando em “Moose the mooche” (Parker), “Little Willie leaps” (Miles) e especialmente na inacreditável versão de “Move” (Denzil Best), fraseando como um “horn player”, com incríveis variações de andamento, subdivisões rítimicas etc. Assim como Bill Evans, adorava se divertir no estúdio, criando uma concepção orquestral ao sobrepor violino, viola e o exótico violino tenor, afinado uma oitava abaixo do instrumento “normal”. Em alguns momentos, a impressão é a de estarmos ouvindo uma big-band formada apenas por violinistas.

Despido de preconceito, uma característica inerente aos sábios, Harry produziu até grupos de rock como o The Left Banke, do qual seu filho Michael Browne fazia parte, e também a dupla pop-country Best of Friends (Bing Bingham & Joe Knowlton), lançada no Brasil por Roberto Quartin. Ao mesmo tempo em que atuava em sinfônicas, tocava na banda além-fusion de Gil Evans, participando de discos como “Where flamingos fly” e “Collaboration” (com Helen Merrill), nos quais o violino-tenor cumpria a função de um instrumento de sopro. “Minha intenção era faze-lo soar como um sax tenor”, revelou em entrevista ao também violinista Jon Rose em 1989. Contou ainda que registrou “Stringsville” no primeiro equipamento de gravação multi-track, uma máquina Ampex de oito canais. “Colocamos todos os músicos juntos em um único canal, de modo que sobraram sete para que eu fizesse as sobreposições”.

Foi o violinista que mais gravou na história da música, durante sete décadas de atividade – de Louis Armstrong a Jaco Pastorius, de Coleman Hawkins a Frank Sinatra, passando por Nina Simone e Blood Sweat & Tears. Era o favorito de Tom Jobim (tendo presença marcante na faixa “Stone flower”) e Quincy Jones (aparecendo no documentário “Listen up”, de 1990), com quem gravou dois dos mais espetaculares solos de violino na história da música, nas faixas “What’s going on?” e “Tell me a bedtime story”. Nesta última, que selecionei ao produzir este ano a retrospectiva “Summer in the city: the soul jazz grooves of Quincy Jones” para a Verve, Harry sobrepôs quinze violinos na transcrição de um solo de Herbie Hancock. Uma proeza de efeito tão estonteante quanto os obtidos em outras faixas de “Stringsville” como “Champagne blues” e “Give me the simple life”, hit de Tony Bennett que até hoje faz parte do repertório dos shows do cantor, com quem Harry, claro, também gravou inúmeras vezes. Agora é torcer pelo relançamento de seus outros discos, como “Blues shout”, também da Atlantic. O mundo merece.

Legendas:
Chamada de capa
“Dois mestres do jazz, o pianista Bill Evans e o violinista Harry Lookofsky têm dois importantes discos agora relançados em CD pela primeira vez”.
Capa do BIS – capa do CD “New Conversations”
Bill Evans exibe seu refinamento interpretativo em “New conversations”, sobrepondo piano acústico e elétrico
Pág. Interna – capa do CD “Stringsville”
Mestre do violino, o virtuose Harry Lookofsky dá um show de fraseado em sua obra-prima, “Stringsville”


Foto de Harry Lookofsky e imagem do manuscrito de seu solo na faixa “’Round midnight”.



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