Monday, August 27, 2007

Russ Kassoff e Gene Bertoncini brilham em discos emocionantes




Jazz dominado por elegância e sutileza
Russ Kassoff e Gene Bertoncini brilham em discos emocionantes
Arnaldo DeSouteiro

Russ Kassoff levou 52 anos para gravar seu primeiro disco (“Somewhere”) como líder. Mas basta o minuto inicial da primeira faixa para o ouvinte ter certeza de que está diante de um artista muito especial. Preparem-se para agüentar os elogios: elegância, sutileza, lirismo, sofisticação e por aí vai. A técnica é tão grande que parece nem existir. Passagens complexas são executadas com total naturalidade. E a tal primeira faixa, “Look for the silver lining”, mostra, conjuga, tudo isso. O nível de entrega emocional lembra Keith Jarrett, sem os gemidos. Os sentimentos não são intelectualizados, simplesmente afloram, na leitura impressionista do tema de Jerome Kern.

O modo de “ferir” as teclas, sem machuca-las, ao contrário do que fazem os pianeiros, permite a Russ flutuar sobre elas, como acontece na delicadíssima abordagem bossanovista de “Somewhere” (Bernstein), na qual as vassourinhas do batera Tim Horner acariciam a caixa-clara. Já em “The best thing for you” – o tema de Irving Berlin que eu não ouvia tocado de forma tão resplandecente desde o registro de Chet Baker –, o baixista Martin Wind se destaca em exuberante longa passagem em uníssono com o piano.

Lirismo inebriante

Os números de piano-solo mostram que Russ, se assim quisesse, poderia gravar um projeto inteiro neste esquema. “It only happens when I dance with you” (Berlin novamente) traz à tona diversas escolas do passado, mas Kassoff escapa incólume de qualquer imitação. Domina o Steinway B como um cavaleiro que cumpre seu percurso sem derrubar uma só baliza, superando os obstáculos com fleuma e perfeita coordenação de movimentos. Toda esta destreza realçada pela translúcida qualidade de gravação obtida por Katherine Miller.

E ainda temos o Kassoff compositor de maravilhas melódico-harmônicas tipo “A Sackets sunset”, com Martin Wind usando o arco no solo de contrabaixo enquanto as vassourinhas bailam sob o comando de Horner. O mesmo aprazível local de veraneio, onde o pianista anualmente se apresenta no Sackets Harbor Jazz Festival, é retratado em “Samba du Sackets”, com a mão direita voando em frases longas enquanto a esquerda esbanja swing – uma comparação com “Campari & soda”, de Eliane Elias, não deve melindrar ninguém. “You are all the world to me”, outro poema, tem discreto apoio de Wind, sem bateria.

Sozinho, Russ nada fica a dever a Bill Evans em “I remember”. Nem a Oscar Peterson em “Oh, lady be good” (Gershwin), encaixando citação do tema dos Flintstones durante seu improviso ebuliente, quando dobra o andamento dispensando o baixo e a bateria, que depois voltam a todo vapor. Usa “Take the A train” como chamada para “Love you madly” (Ellington), optando por leve condução em stride-piano. E “canta” a melodia de “It never entered my mind” (Rodgers & Hart) com a sabedoria de quem, inúmeras vezes, a tocou acompanhando Sylvia Syms e Frank Sinatra.

Sim, Russ foi o pianista de The Voice entre 1980 e 1991. E de Liza Minelli entre 1982 e 2000, atuando também como seu diretor musical e regente. “Estive no Rio algumas vezes com Liza, nos anos 90, e comemorei meu aniversário de quarenta anos na casa de Ana Maria Tornaghi, em uma festa na qual Baden Powell estava presente. Depois fomos todos ver o nascer do sol no Corcovado!”, relembra.

Completa o programa com “Where have all the flowers gone” (Peter Seeger), escolha aparentemente inusitada para um recital jazzístico, mas não fora de propósito porque o mágico Russ Kassoff consegue levar o tema para outra dimensão, reflexiva e intimista. Quem puder conferir tanto talento ao vivo, deve arriscar uma visita ao Del Posto, o charmoso restaurante de Mario Batali na Décima Avenida em NY, entre as Ruas 15 e 16, onde Russ volta e meia toca com o guitarrista Bucky (pai de John) Pizzarelli nas noites de segunda-feira. Com sorte, poderá vê-lo em ação também no comando de sua big-band no Gillespie Auditorium. Ou então com um trio no Knickerbocker. Mas não sem antes contemplar o CD.

Violão mágico

Amigo de longa data de Kassoff, Gene Bertoncini contou com a canja do colega na jam que, em abril, no La Madeleyne em NY, comemorou os 70 anos do violonista. São músicos de alta estirpe, adeptos da mesma elegância musical reinante em “Somewhere” e no mais recente CD de Bertoncini, “Just above a whisper”. O título já diz tudo. Em colaboração com a cantora Janet Planet e o pianista John Harmon, traduz perfeitamente os conceitos de sutilidade e requinte. Músico dos músicos, Gene sempre foi o meu favorito entre os violonistas de jazz – e o de Luiz Bonfá também. Cresci ouvindo suas intervenções preciosas em discos de Bonfá, Lalo Schifrin, Michel Legrand, Hubert Laws, Paul Desmond, Tony Bennett e tantos outros. Realizei um sonho ao assisti-lo ao vivo pela primeira vez, em 1987, em duo com Michael Moore no finado “Zinno”, em New York, aonde retornei inúmeras vezes. E depois tive honra de trabalhar com ele em estúdio, durante as gravações de “The Bonfá Magic”, também em NY, em 1991.

Virtuoso sem jamais descambar para o exibicionismo, Gene não joga fora uma nota sequer. Toca a essência do essencial. Perfeccionista do nível de obsessão de um João Gilberto, passa às vezes anos trabalhando novas possibilidades harmônicas para uma canção. O toque, sem palheta, é invariavelmente preciso mas nunca mecânico. Seus companheiros neste novo disco rezam na mesma cartilha, sem atropelos, privilegiando as nuances. Por isso escapam da embolação que costuma afetar trabalhos de piano e violão, que somente dão certo quando nas mãos de mestres da harmonia (sei bem disso porque os encontros que produzi de Paulo Levita com João Donato eu não me arriscaria a fazer com mais ninguém...)
Perfeita interação

Com a calma dos sábios, Gene e John nunca se chocam. Violão e piano complementam-se para os vocais límpidos de Janet, e revezam nos solos. O repertório, impecável, abre e fecha com Johnny Mandel, autor de quatro temas: “A time for love” (faixa inicial, somente com voz & violão), “Close enough for love” (jóia imortalizada por Shirley Horn e Tony Bennett), “The shadow of your smile” (vencedora do Oscar em 1963) e “The shining sea”, letrada por Peggy Lee três anos depois, e onde Gene escancara a influência de Bonfá nos “tremolos”. O piano entra na segunda faixa, “But beautiful”, preenchendo cuidadosamente os espaços propositalmente deixados pelo violão. Desliza com incrível suavidade durante o improviso, e com mais parcimônia ainda fornece a “cama” para o solo de Gene. Dos mesmos autores, Jimmy Van Heusen & Johnny Burke, “Like someone in love” começa valseada, abriga cativante passagem tocada/vocalizada em uníssono pelos três artistas, e chega ao 4/4 na hora do improviso. Os desenhos de Bertoncini após a volta de Janet, incluindo até uma linha de walking-bass arrepiante, são merecedoras de uma tese.

Gene segue emocionando em “Estate”, o tema de Bruno Martino pelo qual se apaixonou ao ouvir a gravação de João Gilberto no célebre “Amoroso”. Para surpresa geral, pela primeira vez na vida ataca de cantor, dividindo os vocais com Janet, brindada com uma blue note desconcertante na marca de 1m01s. A lamentar somente a equivocada opção pela letra em inglês do bazófio Joel “Movieman” Siegel (felizmente já falecido), quando existe uma versão muito superior concebida (e gravada) por Jon Hendricks no álbum “Freddie Freeloader” em 1990.

Além de belos temas de Legrand (“Once upon a summertime”), Porter (“Every time we say goodbye”, com Bertoncini usando “Goodbye”, de Gordon Jenkins, como introdução, e Planet dissecando cada palavra, alongando “allow you” ao máximo) e Neal Hefti (“Girl talk”), somos brindados com as inéditas “Wine with dinner” de John Harmon, somente com piano & violão, e “To be yet again”, parceria de Harmon & Planet dedicada a Bill Evans mas roubada pelo solo extraordinário de Bertoncini. No total, 55 minutos de magia. Sem necessidade de eciclemas.

Sons axifugos

A bela californiana Alexa Weber Morales tenta, no CD “Wanderings”, algumas experiências interessantes com ritmos latinos. Co-produzido pelo trombonista Wayne Wallace, reúne baluartes da cena de San Francisco – entre eles os percussionistas John Santos e Michael Spiro (não confundir com o batera Michael Shapiro). Começa com uma adaptação bisonha para “Habanera” da ópera “Carmen”, de Bizet, arrisca-se no português em “Ave rara” (Edu Lobo & Aldir Blanc), junta as Jobinianas “Água de beber” e “Águas de março”, perde tempo (apesar do bonito arranjo vocal) com o saturado “Calling you” do filme “Bagdad Cafe”, e finalmente acerta na salsa “El cantante” de Ruben Blades. Mas os melhores momentos ficam por conta de três composições próprias (“Her ways wander”, “The goddess of war”, “Así es el amor”) e da linda recriação da canção mexicana “Angelitos negros”. Quem quiser, pode conferir Alexa ao vivo amanhã no “Jazz on the row”, em San Jose, e dia 9 de outubro no “Yoshi’s”, em Oakland.

Professora no Berklee College of Music, técnica para dar e vender mas timbre e coloratura não muito sedutores, Jan Shapiro opta pela praia segura dos standards em “Back to basics”, CD de apenas 31 minutos! Básico demais. Arranjos convencionais e sem ousadia para “Change partners”, “Squeeze me”, “Love is here to stay”, “Don’t be that way” (duo com o guitarrista John Baboian), “Sister Sadie”, “Beautiful friendship” e um “’S wonderful” velocíssimo mas sem swing, abortado por um fade-out inexplicável. O quarteto de base toca burocraticamente, apesar da presença da baterista Terri Lyne Carrington. E a faixa mais agradável acaba sendo o duo com o pianista Tim Ray em “Be anything, be mine”.

Em termos de equívocos de produção, rivaliza com “Song and dance”, do guitarrista Bobby Broom em trio com Dennis Carroll (baixo) e Kobie Watkins (bateria). A despeito de seu grande talento, Bobby erra feio e pesa a mão nos arranjos que fazem o sorumbático disco se arrastar por mais de uma hora. Suas composições são fracas, com excesso de convenções e pouca alma. As releituras patinam. O batera, “over” e barulhento demais, estraga “Where is the love”. Os arranjos conferidos a “Smile” e “You and the night and the music” desafiam qualquer motivação lógica, afrontam o bom senso estético. Salvam-se “Wichita lineman” e “Can’t buy me love”. Mas é pouco, muito pouco.

Legendas:
Russ Kassoff, pianista que trabalhou com Frank Sinatra e Liza Minelli, lança seu primeiro disco como líder, "Somwhere"
O violonista Gene Bertoncini, a cantora Janet Planet e o pianista John Harmon unidos em um encontro mágico, de impecável repertório, no CD "Just above a whisper".

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