Sunday, July 1, 2007

O bom jazz que vem da Europa



O bom jazz que vem da Europa
Arnaldo DeSouteiros


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 14 de Junho de 2007 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa" em 18 de Junho de 2007

Com as sucessivas viagens pelo mundo, e portanto inúmeras compras, a pilha foi aumentando. Para falar a verdade, as pilhas. Pelo que a minha visão alcança, três. Com cerca de cinqüenta CDs em cada uma delas. Claro que há também uma grande quantidade de DVDs esperando para serem conferidos e resenhados. Mas esses estão enfileirados em outra prateleira e ficarão para uma próxima oportunidade. Por enquanto, hoje me concentrarei somente nos CDs que vem da Europa, onde o jazz atualmente é mais bem tratado do que nos EUA. Entre os destaques, vários trabalhos do baterista suíço Fredy Studer (inclusive uma coletânea muito especial do grupo OM) e as produções do quarteto italiano Novecento, formado pelos talentosos irmãos Nicolosi.

O som da surpresa

“OM: a retrospective” (ECM) funciona como excelente introdução para quem nunca ouviu o trabalho do melhor grupo suíço dos anos setenta. Embaladas por uma bela apresentação gráfica – incluindo um livreto de vinte páginas com detalhada fica técnica, fotos inéditas e texto bilíngüe (inglês e alemão) assinado por Peter Rüedi – estão dez notáveis faixas, totalizando 80 minutos de música instigante. Extraídas dos quatro LPs gravados pelo OM, em sua fase áurea, entre 1975 e 1980, para o selo JAPO, subsidiário da alemã ECM, fornecem um belo painel da extrema criatividade exercitada por Urs Leimgruber (flautas, saxofones tenor & soprano), Christy Doran (guitarras), Bobby Burri (baixo) e Fredy Studer (bateria & percussão).

O som dos mancebos poderia, na falta de melhor termo, ser classificado como “fusion experimental”. Uma comparação? Bem: imaginem se o Weather Report, da primeira fase, tivesse continuado a evoluir naquela linha de “I sing the body electric”, sem Jaco Pastorius, e mantendo Miroslav Vitous no contrabaixo. Deu para sacar? Sei que parece uma incongruência depois que ressaltei a criatividade do grupo. Mas aí é que está o pulo do gato do OM. Apesar da grande influência do WR, nunca imitaram seus ídolos, souberam transformar a inspiração em uma música extremamente original, tocando exclusivamente material próprio. Todos os quatro membros sempre foram ótimos compositores, como provam as faixas dispostas em ordem cronológica. Sem falar da ausência de teclados, que colaborou para tornar a sonoridade do grupo bem pessoal.

As duas primeiras músicas, “Holy” e “Lips”, pertenceram ao LP “Kirikuki”. “Rautionaha” foi a faixa-título do segundo álbum. “Dumini” vem de “OM with Dom Um Romão”, a antológica colaboração em 1978 com o percussionista brasileiro, que, coincidentemente, participara do Weather Report entre 1971 e 1975, e mudara-se para a Suíça após um longo tratamento para extirpar um câncer do intestino. E o disco “Cerberus”, considerado o trabalho mais maduro do OM pelos próprios membros que organizaram a compilação, está inteiramente representado por seus seis longos temas, fazendo jus à sábia definição de jazz, pelo historiador Whitney Balliett, como sendo “o som da surpresa”. Agora é torcer para que, em um futuro breve, os álbuns originais do OM sejam todos relançados.

Benditas transgressões

Principais responsáveis por somar elementos do rock à usina eletro-acústica fusionista do OM, o baterista Freddy Studer e o guitarrista/violonista Christy Doran mantiveram seus nomes em evidência graças a brilhantes carreiras-solos. Apaixonados por Hendrix, juntaram-se à infalível baixista Kim Clarke e à audaz vocalista Erika Stucky para revisitar livremente a obra do ícone iconoclasta no CD “Jimi”, captado ao vivo em Munich e lançado pelo selo alemão Double Moon. “Spanish castle magic”, “Stone free”, “Purple haze”, “Fire” (na melhor releitura desde a de Urszula Dudziak para a CTI em 1984), “Voodoo child” (uma das favoritas de Gil Evans), “The wind cries Mary” (jazzifica por Donald Harrison em 94) e “Crosstown traffic” estão entre as onze faixas deste tributo tão rascante quanto eletrizante.

Studer & Doran seguem barbarizando no CD-duplo “Half a lifetime” (em nova tiragem da Unit Records), ampla retrospectiva dos trabalhos que fizeram juntos em cerca de trinta anos. Detalhe: tudo inédito, incluindo temas com os baixistas Jamaaladeen Tacuma e Jean-François Jenny-Clark (“Quasar”), o trombonista Ray Anderson (“Collage”) e duas faixas ao vivo com o grupo OM e Dom Um Romão: “Sono du wase”, captada no Festival de Jazz de Zurich em 1979, e “Back to front”, do concerto de despedida do grupo em 1982, com canjas de Charlie Mariano, Manfred Schoof e Trilok Gurtu. Sem falar do encontro com o saudoso guitarrista Sonny Sharrock em “Blind Willie”, estonteante performance no topo do Monte Pilatos (2100 metros acima do nível do mar) em Luzern, numa noite de chuva torrencial em 1989.

Enveredando por um caminho estético diferente e ainda mais ousado, Studer soma forças a outro baterista eternamente vanguardista, Pierre Favre, no petardo percussivo de “Crisscrossing”, editado pela etiqueta inglesa FMR. Os dois suíços, amigos de longa data, tocam juntos em variados projetos desde 1980, e trabalharam durante anos na famosa fábrica Paiste, desenvolvendo pratos, gongos e toda a sorte de instrumentos de percussão de base metálica. Tanto que uma das seis faixas chama-se “A place called Nottwil”, em referência à cidade onde Thomas Paiste (falecido em 2002) construiu sua empresa. Apesar da complexidade das composições, todas escapam da mecanicidade, sem derrapar para o exibicionismo gratuito. A qualidade de gravação é excepcional, com as freqüências graves muito bem definidas, jamais embolando com as médias.

Reafirmando seu salutar ecletismo e o espírito de aventureiro indomável, Fredy Studer une-se a dois outros destemidos – o clarinetista e saxofonista Hans Koch e o violoncelista Martin Schütz, que usa tanto o instrumento convencional quanto um “electric cello” de cinco cordas – para um tributo aos sons da ilha comandada por “Fidel” (Intakt Records). Com a participação de dezoito artistas cubanos, realiza indescritível fusão entre sons eletrônicos (gerados por samples e sequencers) e tambores batá, congas, cajones, shekeres, quintos e claves. Indispensável para quem pensa conhecer tudo sobre a música cubana, mas certamente nunca ouviu nada parecido com faixas do nível de “Vértigo”, “Wood’n’timbales”, “Suenan las claves”, “G-string montuno” (dedicado a Chano Pozo) e a filosófica “Silence is a rhythm too”.

Fusão à italiana

Na cena jazzística italiana, a grande sensação do momento é o grupo Novecento, formado pelos irmãos Nicolosi: Pino (tecladista), Lino (guitarrista), Rossana (baixista) e Dora (cantora). Comandam a Nicolosi Productions, a editora Crisler, possuem luxuoso estúdio em Milão e contratam jazzmen de todo o planeta para o selo da família. Além de discos de nomes como o guitarrista Stanley Jordan (“Dreams of peace”) e o cantor Gregg Kofi Brown (“Together as one”, cuja bela faixa de abertura, “Lullaby to an anxious child” é entoada por Sting), o quarteto lançou seu próprio “Nocento featuring...”, charmoso CD recheado por uma constelação de astros: Toots Thielemans, Dave Liebman, Jeff Berlin, Eddie Gomez, John Tropea, Wayne Dockery, Guy Backer e os saudosos Michael Brecker (“Now that you’ve gone”) e Billy Preston, que recria seu carro-chefe, “You are so beautiful”, na base de piano, voz e cordas, dividindo os vocais com a bela Dora Nicolosi.

Amantes do fusion, os Nicolosi também contrataram o batera panamenho Billy Cobham (há décadas radicado na Suíça), cujo disco “Drum ‘n’ voice - all that groove” trouxe uma nova versão para o clássico “Red Baron”. No final do ano passado, saiu na Europa “Drum ‘n’ voice due 2”, elogiadíssimo (“powerhouse all-star project”) por Bill Milkowski na edição de fevereiro de 2007 da JazzTimes e que ganha, a partir deste mês, distribuição nos EUA via Allegro Corporation. Ao longo de dez novos temas, sob medida para a técnica miraculosa de Cobham, desfilam Brian Auger (disparando num solo alucinado de órgão Hammond em “Waveform”), John Patitucci (baixo em “Take seven”), Buddy Miles (vocal em “Real funk”, com Frank Gambale na guitarra), Dominic Miller (guitarra em “One more day to live”) e muitos outros.

Airto Moreira apronta dois duos com Billy e participa também de “Ozone part 2”, na qual a baixista Rossana, juntando balanço e firmeza, conduz na maior classe um groove preciso que serve como base para solos de Jan Hammer (sintetizador) e Jeff Berlin (baixo). Além de Airto, outro percussionista, Marco Fadda, atua de forma irretocável, principalmente nas congas, que às vezes parecem atreladas ao bumbo de Cobham. O guitarrista Lino e o tecladista Pino, autores dos arranjos e das composições, marcam presença em todas as faixas. Embora empregando belos timbres nos teclados digitais, Pino crava sua marca quando ataca no Hammong e especialmente no piano elétrico Fender Rhodes, não por acaso seu instrumento predileto. Os adoradores do Rhodes aplaudem e agradem.

Legendas
“O melhor grupo de jazz da Suíça ganha sua primeira coletânea retrospectiva”
“O baterista Billy Cobham une-se ao grupo italiano Novecento em seu novo disco”

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