Sunday, June 3, 2007

Saudades de Manuel Gusmão e Ico Castro-Neves





Saudades de Manuel Gusmão e Ico Castro-Neves
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 18 de Maio de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Não foi a primeira vez, nem será a última. Aconteceu com Laurindo Almeida, Lindolfo Gaya, Milton Banana, Zé Bodega, Juarez Araújo; alguns dos maiores músicos da história morreram sem merecer um obituário nos chamados “grandes jornais”. Afinal, morto não tem como pagar jabá e a família não tem tempo de preparar press-release. Além do mais, já vai longe o tempo em que artista, ao passar desta para melhor, merecia ter sua obra revista nos cadernos de cultura (cultura?) por um suposto “especialista”. Hoje, algum amigo influente consegue no máximo um obituário todo truncado no primeiro caderno, ao lado do noticiário criminal – Eloir de Moraes, Luiz Bonfá e Dom Um Romão conseguiram este “privilégio”, com suas carreiras (mal) revisadas em textos deploráveis.

Agora, em curtíssimo espaço de tempo, o Brasil perdeu dois de seus mais importantes contrabaixistas, ambos figuras de proa da bossa nova. E os falecimentos passaram em branco. Na verdade, quase em branco. Antonio Carlos Castro-Neves, conhecido no meio musical pelo apelido de Ico (ou Iko), teve anúncios fúnebres publicados pela família e por colegas do meio empresarial de turismo, no qual atuava há vários anos. Manuel Gusmão mereceu um aviso de missa de sétimo dia da sempre amável Hilde e outra nota na coluna do sempre atento Tárik, no JB. E só. Tenho certeza de que ambos os ilustres jornalistas gostariam de ter dado mais espaço a Gusmão. Mas, apesar do prestígio, têm suas limitações. E, para dificultar ainda mais as coisas, nem Ico nem Gusmão foram vitimados por uma tragédia. Nem mesmo pela lipoaspiração que garantiu quinze minutos de fama post-mortem a Luiz Carlos Vinhas.

Tudo bem que Ico Castro-Neves já tinha aposentado o contrabaixo há muito tempo. Mas sua atuação nos primórdios da bossa é mais do que suficiente para garantir-lhe presença entre os nossos principais baixistas. Ufanismo? Bem: no afamado website All Music Guide, ele (grafado como Iko) é comparado a Buster Williams, Michael Moore e ao próprio Gusmão. Está lá também: influenciado por Sam Jones, Oscar Pettiford e Jimmy Blanton, entre outros cobras. Falecido em 22 de março de 2006, Ico nasceu (em15 de maio de1940) em uma família de músicos, exercitando-se com os irmãos mais velhos Mario (pianista/maestro hoje radicado em New Jersey) e Leo, baterista que depois se dedicou à advocacia, e com seus dois irmãos gêmeos: Zeca (clarinetista amador, também já falecido) e Oscar (violonista, arranjador e produtor de fama internacional, radicado em Los Angeles).

De Petrópolis para o mundo

Por volta de 1955, o quarteto formado por Mario, Léo, Ico e Oscar – informalmente conhecido como American Jazz Combo em apresentações na Rádio Difusora de Petrópolis – se transformou no quinteto Os Modernos, com a adesão de, vejam só!, Manuel Gusmão como “crooner”. Em 1957 passaram a tocar, aos sábados à noite, em um programa dirigido por Walter Clark na TV Rio. Depois, com Gusmão transferido para outro conjunto, o grupo dos irmãos Castro-Neves tornou-se presença obrigatória em todos os eventos da fase embrionária da bossa, que nem tinha ainda esse nome. Eventos como o lendário 1º Festival de Samba-Session (realizado, em setembro de 1959, no anfiteatro da Faculdade Nacional de Arquitetura) além do Segundo Comando da Operação Bossa Nova, do Festival do Samba Moderno, e da Noite do Sambalanço. O conjunto também gravou bastante, inclusive uma parceria de Ico & Luvercy Fiorini, "Gosto do seu olhar", incluida no LP "Bossa nova mesmo" lançado pela Philips em 1962.

Líder nato, Oscar reformulou o grupo antes do controvertido “Bossa Nova concert at Carnegie Hall”, em 21 de novembro de 1962, assumindo a função de pianista, com Ico no baixo, Roberto Pontes Dias (bateria) e Henri Percy Wilcox (guitarra). Acompanharam todos os convidados que não haviam levado seus próprios conjuntos. Em seguida, o grupo dividiu shows com Dizzy Gillespie, Laurindo Almeida, Stan Getz e Lalo Schifrin, realizando temporada no Empire Room do hotel Waldorf Astoria. Fora as gravações em discos como “Luiz Bonfá plays and sings bossa nova” (a estréia de Bonfá no selo Verve, em 30 & 31 de dezembro de 62, com produção de Creed Taylor e orquestrações de Lalo Schifrin) e “The rhythm and the sound of bossa nova”, o primeiro disco de Milton Banana, também presente ao concerto no Carnegie como baterista de João Gilberto.

Sidney Frey, idealizador do evento e dono do selo Audio Fidelity, aproveitou para lançar também o álbum “Big band bossa nova – Oscar Castro-Neves and his orchestra”, gravado no Rio em março daquele ano reunindo um combo de treze músicos, com Iko (assim grafado nos créditos) no baixo. Na volta ao Brasil em 63, Ico passou a se dedicar prioritariamente à arquitetura, mas ainda participou, em maio de 64 do show “O fino da bossa” (quando Alaíde Costa se consagrou com “Onde está você”) e fez mais uma gravação memorável, em 65, no sensacional disco “Surfboard”, substituindo Sergio Barroso no conjunto de Roberto Menescal. Mesmo longe dos palcos, permaneceu apaixonado por jazz e chegou a ter sociedade na casa noturna Ballroom. Em sua missa de sétima dia, um dos mais abalados era o amigo de infância Manuel Gusmão. “Quando saímos da Igreja, ele estava arrasado, me disse que não queria ir para casa, e ficamos horas no Jobi tomando chopp”, revela Aparecida, companheira de Gusmão por 31 anos.

O casal de eternos jovens apaixonados – com o qual tive a honra de dividir momentos de grande alegria em inúmeras noitadas em minha casa ou em restaurantes de comida japonesa – jamais poderia imaginar que, menos de três semanas depois, Gusmão sofreria um enfarte fulminante na tarde de 9 de abril de 2006, em seu apartamento no Flamengo. “A sorte é que o Otávio III estava lá e me ajudou a tentar socorrer o Gusmão quando ele começou a passar mal”, conta Aperecida. “Começou a suar, foi tomar ar na janela e caiu na sala. Foi tudo muito rápido, mas pelo menos ele não sofreu, aproveitou a vida até o último minuto”.

Nascido no Rio em 1º de junho de 1934, Manuel Gusmão cresceu fazendo música com os irmãos Castro-Neves. As duas famílias tinham casa aqui em Petrópolis, onde os meninos sempre se encontravam para ouvir e tocar jazz. Devido à idade, o mais próximo de Gusmão era Mário, apenas um ano mais moço. Emociono-me ao lembrar que, somente em 2003, eles gravaram juntos pela primeira vez, por iniciativa minha, em uma faixa (“Someday”) composta por Mario especialmente para o disco “Love dance”, de Ithamara Koorax. Mario fez a programação da base em seu estúdio em New Jersey, trouxe a fita para o Rio e eu fiquei de chamar os músicos para a gravação. O baixista não poderia ser outro senão Gusmão, enquanto Jorge Pescara cuidou das linhas complementares no fretless e no stick.

Brilhante trajetória

Minha admiração por Gusmão começou na infância, por conta de sua participação no LP de estréia de Flora Purim (“Flora é MPM”), cujo primeiro relançamento mundial em CD eu tive o prazer de produzir em 2001. Foi gravado em 1964, ano em que o samba-jazz estava no auge. Mas Gusmão já reinava como baixista nº 1 da bossa desde a abertura dos clubes (Bottles, Baccara, Little Club) do Beco das Garrafas. Fundador do Copa Trio, com Toninho Oliveira ao piano e João Palma (então com 17 anos) na bateria, chamou Dom Um Romão quando Palma ingressou no serviço militar. Mais tarde, depois de Romão conhecer Dom Salvador durante uma viagem a São Paulo, o pianista nascido em Rio Claro substituiu Toninho, compondo-se assim a formação mais conhecida do conjunto.

O Copa Trio acompanhou Elis Regina em seu primeiro show, realizado no Little Club (com participações especiais do pandeirista Gaguinho e da bailarina Marly Tavares) e depois no Bottle’s, antes de seguir para o Teatro Paramount, em São Paulo. No livro “Chega de saudade”, Ruy Castro conta que “o hotel Danúbio praticou racismo explícito e recusou-se a receber Dom Um e Salvador...Elis e Gusmão armaram uma cena na recepção e, com a intervenção de Walter Silva, o hotel só faltou dar a suíte presidencial aos dois músicos negros”. Talvez para evitar que o problema se repetisse, além da óbvia economia financeira, nos shows seguintes o Copa Trio acabou cedendo lugar ao Jongo Trio (de Sabá, Cido Biancchi e Toninho Pinheiro), sediado em Sampa.





Em seu website, o produtor e radialista Walter Silva (Pica-Pau), comenta a presença do Copa Trio na compilação “A bossa no Paramount” (RGE). Destaque para o número criado para o show O Remédio é Bossa, de 26 de outubro de 1964, quando Elis Regina e Marcos Valle, com a participação do Copa Trio, tiraram da platéia os maiores aplausos daquela noite cantando Terra de Ninguém, de Marcos e Paulo Sergio Valle. O número começa com Marcos, ao violão, com um filete de luz dourada sobre sua cabeça, vestindo um suéter azul-turquesa e termina com Elis surgindo no meio do número, sobre um praticável redondo com o ritmo sendo desdobrado, por Dom Um na bateria, Salvador no piano e Gusmão no contrabaixo que soou como uma explosão, levantando a platéia, em delírio. Inesquecível”.

Enquanto isso, no Rio, um futuro astro vivia dando canja nos shows do Copa Trio desde 1961, convidado por Gusmão, seu companheiro nas peladas do Posto Seis: Jorge Ben, para quem os puristas logo torceram o nariz. Mas Gusmão se divertia quando ele cantava “Por causa de voxê, menina”. Esta música e principalmente “Mas que nada” despertaram a atenção de João Mello e Armando Pittigliani, produtores que logo o contrataram em 1963 para a Philips. Puxado pelas duas canções (originalmente lançadas em um 78 rotações!), o LP “Samba esquema novo” trazia arranjos de Meirelles, Gaya e Luiz Carlos Vinhas, com o grupo Copa 5 na base. Explica-se: paralelamente ao Copa Trio existia o Copa 5, liderado pelo saxofonista João Theodoro Meirelles e complementado por Pedro Paulo no trompete.

O estouro de “Samba esquema novo”, que atingiu a marca de 100 mil cópias, levou a Philips a convocar Jorge para dois discos em 64: “Sacundin ben samba” e “Ben é samba bom”, novamente com o suporte imprescindível do Copa 5. Naquele mesmo ano e para o mesmo selo, o grupo participou de “A bossa moderna de Luiz Henrique”. No embalo, Pittigliani autorizou o primeiro LP de Dom Um Romão (“Dom Um”, com Gusmão na base de uma big-band infernal) e a estréia de Meirelles e Os Copa 5 (já com Luiz Carlos Vinhas ao piano) no ultra-jazzístico “O som”, seguido em 65 pelo “O novo som”, ficando apenas Meirelles e Gusmão da formação original, com Eumir Deodato ao piano, Edison Machado na bateria, Waltel Branco (guitarra) e Roberto Menescal (violão). Isso mesmo: seis músicos, apesar do nome permanecer Copa 5.

Ah, antes disso, ainda em 64 Gusmão havia tocado em duas faixas (“Vivo sonhando” e “Vagamente”) do “Wanda vagamente” de Wanda Sá na RGE, integrando o conjunto do pianista Tenório Jr. (com Celso Brando, Pedro Paulo e Edison Machado). E se, infelizmente, o Copa Trio nunca registrou um disco inteiro em seu nome, pelo menos gravou uma faixa fenomenal (“Meu fraco é café forte”, de Dom Salvador, com solos não menos espetaculares de Gusmão e Dom Um) para o LP “É tempo de música popular moderna”, captado ao vivo no Leme Palace Hotel, em 7 de agosto de 64, durante concerto beneficente organizado por Stella Marinho, então esposa do jornalista Roberto Marinho, reunindo também Luiz Henrique, Os Cariocas, Jorge Ben e Tamba Trio. Apesar da precária qualidade técnica, consegui incluir esta preciosa faixa na compilação “A trip to Brazil vol.3: back to bossa”, lançada no exterior pela Universal em 2002. No início do solo de Gusmão, ouve-se o grito de incentivo de Dom Um: "mete os peitos, Gugu!"

Aclamação mundial

Comparado pelo All Music Guide a Ron Carter e Richard Davis, influenciado por Percy Heath e Ray Brown, Gusmão mostrou toda a sua classe nos dois discos do Copa 5, relançados em CD pelo selo Dubas. Sua execução limpa, precisa e segura, altamente jazzística, diferenciava-se da técnica rudimentar de outros baixistas da bossa. Além do mais, ele sabia orientar o posicionamento do microfone. Por isso, nenhum outro disco daquela época trazia um som de contrabaixo superior ao encontrado em “O som” e “O novo som”. Liderando seu próprio trio, ao lado de Edison Machado e do pianista Moacir Peixoto, Gusmão rumou para os EUA e depois para o México, onde viveu durante quatro anos. “Fiquei amigo do principal empresário mexicano, Rogelio Villa Real, sócio da cadeia de hotéis Camiño Real e de um local marvailhoso chamado El Señorial, que abrigava nada menos que cinco casas de shows. Depois da Copa de 70, aí a coisa explodiu de vez, só dava Brasil”, contou-me em 2001, em depoimento utilizado no texto para o CD “Carlos Lyra...Saravá!”

Excursionou pela Europa e, após temporada na Alemanha, voltou ao Brasil em 1975, quando conheceu Aparecida. Passou a tocar com João Donato e Edison Machado no Breguete, o mais punk clube de jazz do Brasil, em cima de um posto de gasolina na entrada de Petrópolis, onde o impacto de ouvir aqueles músicos marcou a minha infância. Reencontrei Gusmão em 1981, tocando no restaurante Parky’s (de Marly Sampaio e Lucia Sweet), em São Conrado. Depois veio a fase de ouvi-lo todas as noites em suas temporadas nas boates Calígula (por volta de 85), People, Club 1 (em trio intimista, sem bateria, ao lado de José Roberto Bertrami e Maria Fattoruso em 93), Noturno (com Edson Frederico) e finalmente no Guimas, já no novo milênio. Também excelente cantor, vidrado em Sinatra e Nat King Cole, sabia de cor todos os standards.

Bossa eterna

Durante uma das vindas de Dom Salvador ao Brasil, em 2000, Dom Um Romão e Gusmão tentaram realizar o sonho de fazer um disco do Copa Trio. Tivemos algumas reuniões na minha casa, mas Salvador precisava retornar logo para NY, e o projeto terminou arquivado. Gusmão também mostrava-se reticente em voltar a gravar – algo que não fazia desde o LP “Muito na onda”, do Conjunto 3-D (liderado por Antonio Adolfo com Beth Carvalho, Eduardo Conde, Nelson Serra e marcando o début de Helio Delmiro) para o selo Copacabana em 1967. Mas acabei convencendo-o a participar, ao lado de Dom Um, do disco de estréia (mais um!) da pianista Paula Faour, “Cool bossa struttin’”, de grande repercussão em 2002 no Japão, onde Gusmão foi chamado de “o Ray Brown brasileiro” pela revista Swing Journal. Sua execução em todas as faixas, notadamente “O grande amor”, “Tristeza” e “Blue in green”, é brilhante. E, além de produzir o CD, ainda tive a alegria de dividir os vocais com Gusmão e Paula na faixa “Mr. Tom”.

Outra sessão memorável que produzi para o meu selo JSR, com Gusmão arrasando em todas as músicas, aconteceu em janeiro de 2004 para o álbum “On a clear bossa day”, reativando o quinteto Samba S.A. de Mario Castro-Neves (com César Machado na bateria, Ithamara Koorax e Ana Zinger nos vocais). Novamente a imprensa japonesa se derramou em elogios ao trabalho de Gusmão, em especial à faixa “Tokyo waltz”. Nossa última gravação aconteceu pouco antes da morte de Dom Um em 2005, para o próximo disco de Ithamara. Neste momento, o mercado europeu recebe os singles dos primeiros remixes, incluindo a faixa “O vento”, com uma primorosa performance de Gusmão usando o arco do contrabaixo. Tomamos um whiskinho para comemorar. Afinal, apesar do marca-passo, ele próprio avisava: “Não sou homem de alface”. Saudade.

Legendas:
“Gusmão com o grupo Copa 5 (Toninho, Dom Um, Pedro Paulo e Meirelles) no Bottles Bar em 1964”
“Gusmão (primeiro à esquerda) com o grupo Samba S.A. (Mario Castro-Neves, Ithamara Koorax, Ana Zinger e César Machado) em 2004”
“Oscar Castro-Neves, à esquerda, apresenta os músicos de seu conjunto (Ico, Henri e Roberto) no Carnegie Hall em 1962”

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