Monday, June 4, 2007

Os amigos brasileiros do Tio Creed



Os amigos brasileiros do Tio Creed
"Discos famosos de Tom, Eumir, Airto e Astrud ressurgem em CDs"
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 7 de Dezembro de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

“Creed Taylor, nascido em Lynchburg, Virginia, a 13 de maio de 1929, revolucionou os conceitos de respeitabilidade e de popularidade do jazz através da CTI Records”, sentencia o historiador Douglas Payne em seu notável website sobre uma das mais importantes gravadoras na história deste gênero musical. E vai além: “Na verdade, grande parte da mais significativa produção jazzística, na segunda metade do século XX, foi moldada sob a orientação e supervisão de Taylor”. Nenhum exagero para quem conhece a trajetória deste genial produtor, que salvou a Bethleem Records da falência nos anos 50, dirigiu a divisão de jazz da ABC-Paramount (por onde o ex-trompetista, fã de Ernie Royal, lançou vários discos liderando a Creed Taylor Orchestra), criou o selo Impulse! em 1961 (concebendo obras-primas de Coltrane, Gil Evans e Oliver Nelson segundo o slogan “The new wave of jazz is on Impulse!”), depois comandou a Verve e finalmente fundou a produtora CTI em 67, inicialmente vinculada à A&M mas transformada em companhia independente três anos mais tarde.

Embora até hoje em atividade – ainda que comercializando seus novos produtos somente através da internet, em esquema “low profile” – a CTI garantiu seu lugar na história graças aos discos antológicos lançados pelo visionário Creed nos anos 70, quando ajudou a consagrar o estilo “fusion”, despertando a ira dos puristas. Tal valioso catálogo volta a ser explorado na série “CTI Timeless Collection”, recém-lançada com distribuição da King Records. Os primeiros sete títulos focalizam artistas brasileiros, com todos os CDs preservando as mixagens (de Rudy Van Gelder) e as capas originais (criadas, em sua maioria, pelo fotógrafo Pete Turner em dupla com o artista gráfico Bob Ciano), com remasterizações em 24bits feitas pelos engenheiros japoneses Seiji Kaneko, Hatsuro Takanami e Kuniaki Talahashi, e novos textos adicionados aos livretos.

Paixão antiga

Um dos grandes responsáveis pelo sucesso da bossa nova no mercado americano, quando lançou os multi-platinados e Grammyados “Jazz Samba” (Stan Getz & Charlie Byrd) e “Getz/Gilberto” (de Stan com João) no início dos anos 60, Creed também gravou Tom Jobim, Luiz Bonfá, Astrud Gilberto, Laurindo Almeida e Bola Sete em sua fase de diretor artístico da Verve, após Norman Granz ter vendido a companhia para a MGM. Em entrevista publicada na edição de outubro de 2005 da revista DownBeat, ao ser contemplado com o “DB Lifetime Achievement Award”, resumiu as diferenças entre ele e Norman em uma sentença: “Eu costumava ouvir aqueles discos da série Jazz at the Philharmonic, e aqueles solos imensos não faziam sentido para mim”, afirmou Creed, que sempre tratou seus discos como produtos, ciente de quão importantes eram os aspectos de embalagem gráfica e marketing para torna-los atraentes para os consumidores.

Em maio de 1963, antes mesmo do estouro de “Garota de Ipanema”, Taylor bancou “The composer of Desafinado, plays”, o disco de estréia-solo de Jobim. Algo que ninguém no Brasil, nem mesmo o amigo Aloysio de Oliveira, arriscara fazer. Voltou a trabalhar com Tom no “Wave” de 1967, e em 1970, nas sessões que geraram “Tide” (lançado como o último disco que Jobim e Taylor deviam à A&M, onde Creed também produziu álbuns do organista Walter Wanderley e do grupo Tamba 4) e “Stone Flower”, uma das primeiras jóias da CTI, com arranjos primorosos de Eumir Deodato.

Disco perfeito, irretocável, “Stone flower” reúne músicas compostas especialmente para o projeto (“Tereza, my love”, “Andorinha” e o “Choro” mais tarde rebatizado “Garoto” em homenagem ao grande violonista), recriações de “Sabiá” e “Aquarela do Brasil” (Tom barbariza no piano elétrico), e novas orquestrações de Eumr para temas gravados meses antes para a trilha do filme “The adventurers”. Entre eles, um certo “Children’s games” (futuro “Chovendo na roseira”) e “Amparo”, rebatizado “Olha Maria” depois da letra de Chico. Há desempenhos fantásticos de Ron Carter, Hubert Laws, Joe Farrell, Urbie Green e Harry Lookofsky (então spalla da Filarmônica de New York), mas o grande herói entre os sidemen é João Palma, no auge do auge, dando uma aula de bateria.

Eumir em dose tripla

Deodato também viria a gravar, em 72, sob os auspícios de Creed, seu primeiro disco no mercado americano. Puxado pela adaptação do poema sinfônico “Also sprach Zarathustra” de Richard Strauss, popularizado ao ser incluído na trilha de “2001, uma odisséia no espaço”, de Kubrick, o hoje célebre “Prelude” chegou ao primeiro lugar na parada de jazz e ao segundo na parada pop da Billboard. Só não alcançou o topo porque “Killing me softly”, de Roberta Flack, para o qual, ironicamente, Eumir fizera dois arranjos, se “recusou” a deixar o posto. Esta reedição em CD traz, como faixa-bônus, a versão editada de “Zarathustra” lançada em compacto e vencedora do Grammy de “melhor performance pop instrumental”. Outros momentos brilhantes são “Spirit of summer” (Jay Berliner estraçalha no violão), “Prelude to afternoon of a faun” (Debussy), o improviso de Eumir em “Carly & Carole” sob o estímulo de Ray Barretto, e os grooves funkyados criados por Billy Cobham em “Baubles, bangles and beads” e “September 13”.

Os dois outros álbuns de Eumir para a CTI, antes de mudar-se para a MCA, também estão relançados nesta coleção. “Deodato 2” repetiu a fórmula de “Prelude”, com adaptações de obras clássicas – “Pavane for a dead princess”, de Ravel, e “Rhapsody in blue”, de Gershwin – mescladas a temas explosivos compostos pelo líder (“Skyscrapers” e “Super strut”), além de inspirada revisão de “Nights in white satin”, do grupo Moody Blues. Há contribuições incendiárias de Stanley Clarke, Rick Marotta, Billy Cobham e especialmente John Tropea, o guitarrista mais subestimado da era do jazz-rock. Na época do lançamento original, a DownBeat deu quatro estrelas ao disco, fazendo uma interessante observação no final da crítica assinada por Michael Bourne: “As before, if you loved Prelude, and many did, Deodato 2 is more of the same. But if you hated Prelude, and many did, Deodato 2 is more of the same”.

Tropea segue arrasando em “Deodato/Airto in concert”, captado ao vivo no Madison Square Garden, em 20 de abril de 1973, mas lançado somente no ano seguinte, quando Eumir já havia deixado a CTI. Os dois craques brasileiros não tocaram juntos em momento algum, ao contrário do que o título dava a entender. Deodato, então tratado como superstar, encerrou a noite, enquanto Airto fez o show de abertura com um grupo diferente. Creed pegou duas performances de Airto (“Paraná”, do tecladista Hugo Fattoruso, e “O Galho da Roseira”, com Flora Purim no vocal & violão), um fulgurante arranjo de Eumir para “Spirit of Summer” e duas músicas escaladas para o primeiro LP do maestro na MCA, assim devidamente torpedeado: “Do it again” (hit do Steely Dan) e “Whirlwinds”, tour-de-force de John Tropea, com abrasador solo de Rubens Bassini nas congas. Vendeu muito, aumentou ainda mais a popularidade de Airto, e deixou Deodato tremendamente irritado.


Aulas de percussão

Airto Moreira, apesar de ter feito seus dois primeiros discos (“Natural sounds” e “Seeds on the ground”) fora da CTI, vinha trabalhando como sideman para Creed Taylor desde 1967. Em 72, finalmente, entrou para o cast mais cobiçado daquela época, debutando na CTI com “Free”, uma superprodução que incluía Keith Jarrett, Chick Corea, George Benson, Ron Carter, Stanley Clarke, Hubert Laws, Joe Farrell, Jay Berliner e uma seção de metais orquestrada por Don Sebesky. O solo de Jarrett, em sua bossa estilizada “Lucky southern”, de tão genial, mereceu análise na DownBeat. A regravação de “Return to forever” superou, na opinião de muitos, o registro original de Chick para a ECM. E a faixa-título, uma alucinada e alucinante trip improvisada por Airto, que usou acoplou berimbau e flautas de bambu ao estabelecer as pulsações em sintonia com o baixo de Ron Carter, virou “lição de casa” para todos os músicos que tentavam entender a revolução percussiva detonada por Airto desde sua associação com Miles Davis.

Para a gravação do álbum seguinte, “Fingers”, em 73, Airto conseguiu convencer Creed a deixa-lo usar seu novo grupo. Assim, ao invés do dream-team típico das sessões da CTI, levou para o estúdio de Van Gelder nomes até então desconhecidos: Hugo Fattoruso (teclados), seu irmão Jorge (bateria) e Ringo Thielmann (baixo elétrico), uruguaios descobertos por Moreira no restaurante Golden Chariot, em NY. Formavam o trio OPA, transformado em seção rítmica do conjunto de Airto, complementado pelas guitarras de David Amaro e pelos vocais de Flora. Hugo, a alma da banda, também cantava, tocava gaita e escrevia os arranjos. Registraram um discaço de alta energia criativa, marcado pelo impacto devastador de faixas como “Romance of deaf” (erroneamente grafada como “death”), “Wind chant” e “Tombo in 7/4”, carro-chefe do meu CD “CTI: Acid jazz grooves” (1997), até hoje a compilação da CTI mais vendida no Japão.

A presença brasileira é maciça no CD “Gilberto with Turrentine”, captado em 71 reunindo Astrud e o tenorista Stanley Turrentine. Eumir nos teclados e arranjos, Sivuca no violão, mais a trinca de azes do ritmo formada por Dom Um Romão, João Palma e Airto, arrepia em “Ponteio” (canja de Toots Thielemans), “Zazueira” (Deodato no órgão e Fender Rhodes, Palma usando vassouras e Dom Um no surdo de marcação), “Wanting things” (lindo tema de Burt Bacharach) e “Mulher Rendeira”, com duas baterias (Palma e Romão) gerando instigante efeito. Figura de importância decisiva na carreira de Astrud, ao incentiva-la a gravar as versões em inglês para “Garota de Ipanema” e “Corcovado” no histórico “Getz/Gilberto”, e depois ao contrata-la para a Verve, Creed acabou se desentendo com a cantora durante as gravações de “Gilberto with Turrentine”. Astrud chegou a gravar a faixa “Love story” em inglês, espanhol, italiano e até alemão, mas se estressou e abandonou o estúdio. Por isso, “To a flame” e “Vera Cruz” viraram temas instrumentais. Brigas à parte, o conteúdo musical é inebriante. E Astrud, clicada por Pete Turner para a capa, está uma gostosura. Com todo o respeito.

Legendas:

“Stone Flower”, antológico álbum de Tom Jobim, ressurge com a mixagem original
O relançamento de “Prelude”, de Eumir Deodato, traz a versão editada de “2001” como faixa adicional

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