Monday, June 4, 2007

O jazz (se) diverte na Coréia - All That Jazz in Korea!



O jazz (se) diverte na Coréia
“Um mercado em expansão e livre de preconceitos”
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 31 de Agosto de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

No início dos anos 80, quando nos EUA o fusion entrava em completo declínio e os young-lions da onda retrô (comandada por Wynton Marsalis) iniciavam sua calamitosa ascensão, o carente mercado japonês salvou a vida de muita gente. Ainda na fase de expansão iniciada na década anterior, recebeu de braços abertos todos os tipos de jazzistas, de todas as partes do mundo. Havia espaço tanto para os fusionistas como para os neo-boppers, além de abrigar veteranos em decadência. Foi o ápice do chamado “milagre jazzístico japonês”. Artistas de pouca popularidade nos Estados Unidos, como Richard Davis, Kenny Drew, Roland Hanna, Lew Soloff, Helen Merrill, David Matthews, Will Lee e John Tropea, para citar apenas alguns, usufruíam do mesmo status de Chick Corea ou Herbie Hancock, por exemplo.

Trabalhando a pleno vapor, a bolha de crescimento da indústria jazzística nipônica propiciava o surgimento de novas revistas, gravadoras, clubes e festivais. E gerava fenômenos como o Manhattan Jazz Quintet – idealizado em 1984 por Yasuki Nakayama (da revista Swing Journal) e Shigeyuki Kawashima, então manda-chuva da divisão de jazz da poderosa King Records, – que se tornou o grupo de jazz mais popular do Japão, vendendo cerca de 100 mil cópias a cada lançamento. Detalhe: o conjunto, que na formação original tinha David Matthews, Charnet Moffet, Steve Gadd, Lew Soloff e George Young, jamais fez um único show nos EUA! Logicamente, os artistas locais também se beneficiaram, e cantoras como Kimiko Itoh e Keiko Lee passaram a ser vistas como pop-stars.

Mais tarde, em fins dos anos 80, a onda de prosperidade começou a acolher também a turma da “world music”, aí incluindo a bossa nova, com seus representantes de segundo e terceiro escalões. Músicos que garantiam o leite das crianças explorando colegas em multinacionais, assim como matronas “obasans”, proibidas pelos ex-maridos de cantar até mesmo no banheiro, subitamente saíram das tumbas e despencaram nos palcos das churrascarias de Tokyo; mas esta farra dos mortos-vivos é uma outra história. Sem falar dos espertalhões músicos medíocres que descobriram um jeito de arrumar grana fácil montando uma linha-de-produção de jovens cantoras descartáveis – mocinhas desprovidas de talento mas, como dizia minha avó, “muito dadas”.

Tudo ia bem no país das maravilhas até começar a violenta recessão de 1997, que balançou todo o continente asiático. A diferença é que, enquanto o Japão continua mergulhado na estagnação, sem crescimento financeiro, e com a população guardando seus yens debaixo do colchão, a República da Coréia saiu da crise para emergir como grande potência econômica, industrial e tecnológica, vivendo uma nova fase de crescimento acelerado. A economia coreana é hoje a 12ª no ranking mundial. “Coréia dinâmica”, o novo lema nacional de uma nação que se orgulha de sua herança cultural, demonstrando grande amor pelas artes.

Onde o jazz é pop

Com uma população estimada em 50 milhões de pessoas, a Coréia conta hoje com um setor de produção liberalizado, facilitando o investimento estrangeiro direto por meio de participação no patrimônio e de atividades de fusões e aquisições envolvendo empresas coreanas. O bem estar social e a alta qualidade do sistema educacional, responsável por uma das maiores taxas de alfabetização do mundo, em muito contribuíram para a “expansão cultural”. Um grande impulso foi dado com a criação, em 1991, da Universidade Nacional Coreana de Artes. Na área musical, o jazz vem sendo um dos maiores beneficiados, com forte divulgação e consistente crescimento na fatia do mercado não apenas discográfico mas também de shows.

Localizada ao longo do rio Hangang, Seul, capital da Coréia e a décima maior cidade do mundo, com mais de 11 milhões de habitantes, é o centro natural das atividades jazzísticas. Não seria exagero dizer que, em termos de interesse (por parte do público) e investimento (por parte de gravadoras, empresários e até do Governo, através do Ministério da Cultura & Turismo), a situação do mercado jazzístico coreano se assemelha à do japonês nos anos 80. No melhor dos sentidos. E com várias vantagens. Inexiste, por exemplo, preconceito contra qualquer vertente jazzística. Por conseguinte, quem transita pelo cenário coreano está livre de briguinhas internas, das ridículas panelinhas tradicionalistas, do patrulhamento dos puristas, pois todas as formas de jazz são tratadas com igual respeito, sem o esnobismo dos pseudo-intelectuais.

Desde 2000, não apenas as chamadas grandes gravadoras mas também diversas companhias locais, surgidas após a superação da crise, passaram a investir fortemente em artistas locais e internacionais, com uma visão globalizante muito interessante, pois são formadas parcerias com promotores, conglomerados de empresas de comunicação e universidades, com diversos setores juntando esforços para promover grandes turnês, belos concertos e importantes festivais. Exatamente por não existir uma visão de jazz como “música de museu”, inacessível para “não-iniciados”, o estilo possui passe-livre para trafegar livremente em programas de rádio e televisão de grande audiència. Até mesmo o Faustão de lá, o programa de auditório comandado semanalmente por Kim Dongr Yul na TV MBC, abre espaço para atrações jazzísticas. Com mais uma diferença: além de cantor, o jovem astro pop é um excelente compositor e arranjador apaixonado por jazz.

Na Rádio MBC, o programa diário de maior audiência, “Bae Chul-Soo’s Music Camp”, transmitido entre 18 e 21hs, é apresentado por um veterano cantor e baterista. Em “off”, durante o intervalo de uma entrevista, perguntei qual o seu batera favorito: “Steve Gadd”, respondeu Mr. Bae sem pestanejar! Aliás, é comum que artistas estejam no comando dos programas. Jung-Sik Lee, o mais renomado saxofonista da Coréia, fã de Michael Brecker e Joe Lovano, com vários discos gravados, apresenta o principal radio-show de jazz, “0 hour jazz”, transmitido todas às quintas-feiras, à meia-noite, pela rede CBS. Os jazzmen visitantes também contam com espaço nos mais importantes talk-shows como o “Heart to heart”, apresentado por Ahn Jung-Hyun na TV Arirang, da rede KBS (Korean Broadcasting System), onde fui entrevistado há duas semanas. Sem falar da esplêndida programação musical da EBS, cujo auditório lotado por uma platéia predominantemente jovem, na faixa de 20-25 anos, recebe atrações internacionais para transmissões ao vivo ou especiais pré-gravados.

Alta temporada

A maior concentração de eventos jazzísticos ocorre entre julho e setembro. Em agosto acontece o principal festival, nos jardins do belíssimo National Museum of Korea, em Seul, ao ar livre, à beira do Reflecting Pond, para um público de cerca de 5 mil pessoas, mesclando artistas locais e estrangeiros. O grande sucesso deste ano foi – sorry, periferia – Ithamara Koorax, com seu trio formado por José Roberto Bertrami, Jorge Pescara e Haroldo Jobim. No dia seguinte fomos assistir o grupo Fourplay (Bob James, Nathan East, Larry Carlton, Harvey Mason), no impactante show de lançamento do disco “X”. Ao vivo, o quarteto tem uma performance fantástica, muito superior a qualquer gravação em estúdio. Levando o público do Sejong Center ao delírio, principalmente pela interação telepática entre Bob e Harvey, fecharam a noite com “Westchester lady” no bis. Como bem frisou Nathan East, a Coréia era o primeiro país onde o CD estava sendo lançado, antes mesmo da edição no mercado americano. Uma tendência seguida pelos artistas mais antenados, que agora concedem à Coréia esta prioridade outrora ofertada ao Japão.

Também estiveram por lá, no mês passado, os trompetistas Dusko Goykovich e Chuck Mangione, o pianista Eddie Higgins, as cantoras Laura Fygi e Patricia Barber, o guitarrista Kurt Rosenwinkel, e o grupo Yellowjackets (Russell Ferrante, Jimmy Haslip, Eric Marienthal, Marcus Baylor), atestando a boa receptividade á tão variadas tendências. Aliás, o baixista Haslip apresentou concorrido masterclass no instituto Blue Baton, palco de ótimas palestras e onde também funciona a Academia de Jazz de Seul. Entre os artistas locais que pudemos conferir, vale citar a tecladista Gina Seo (praticante do acid-jazz, devota de George Duke e Joe Sample), a pianista Young Joo Song (do lindo álbum “Jazz meets hymns”), o trio do compositor e pianista Dae Uk Heo e o excelente Triologue, além do guitarrista Sun Chung, da cantora Yeahwon Shin e do grupo Woong San Project

Em setembro, as atrações vão da notável big-band vocal alemã Jazzchor Freiburg ao nosso Sergio Mendes, cuja primeira apresentação na Coréia está agendada para dia 24 no Yonsei University Auditorium Hall. Todos com espaço garantido nas duas principais revistas mensais, MMJazz e Jazz People (esta sempre trazendo um CD encartado), ambas de impressão luxuosa, cujos últimos números destacam o Jarasum Festival que acontecerá entre 21 e 24, reunindo Randy Brecker, Erik Truffaz, Joyce Cooling, Zawinul Syndicate e Victor Wooten, mais os locais Jun Je Duk e Jang Hyo Suk. Sem falar das atrações nos clubes de jazz Palm, Jazz House, Evans e o sofisticado Once in a Blue Moon, onde um casal não gasta menos de cem dólares em uma noitada regada a cerveja Cass. Optando por um bom vinho, a conta chega facilmente ao equivalente a trezentas doletas.

Por falar em gastos, as lojas de disco são uma tentação à parte. Principalmente a matriz da rede Evan, localizada no World Trade Center de Seul. Com um setor especial para jazz, em ambiente lounge com direito a biblioteca, monitores de vídeo e headphones para audição dos produtos em destaque. De estoque estonteante, do swing ao nu-jazz, incluindo amplas seções de discos de vinil (novas prensagens para clássicos dos selos Blue Note, ECM e CTI), dual-discs e DVDs. Porém, mesmo nas inúmeras lojas mais simples, localizadas nas estações de metrô, encontra-se ampla variedade de CDs de jazz, não raro com discos de João Gilberto (“The legendary”, fora de catálogo no Brasil devido a uma disputa judicial, acaba de ser reeditado pela EMI coreana) e Laurindo Almeida (uma “expanded version” do Grammyado “Guitar from Ipanema”) nas vitrines. Quem quiser chutar o balde, pode acabar de torrar o cartão de crédito gastando seus woms nos tentadores B1s de Seocho-gu, bairro do luxuriante Ali Baba Club no subsolo do Friend Hotel, onde rola o maior “jass”. Afinal, na Coréia o jazz é pop!

Legendas:
"Arnaldo DeSouteiro comenta a expansão do mercado jazzístico na Coréia, que superou o Japão como centro cultural no novo milênio”
“Sergio Mendes realiza, no próximo dia 24, seu primeiro show na Coréia”
“O grupo Fourplay decidiu iniciar em Seul a sua nova turnê mundial”

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