Sons jazzísticos em DualDisc
“Discos de Nina Simone e Chris Botti chegam em novo formato”
Arnaldo DeSouteiro
“Discos de Nina Simone e Chris Botti chegam em novo formato”
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 2 de Fevereiro de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
Várias novas tecnologias estão sendo estudadas para encontrar a mídia que, em um futuro próximo, poderia vir a substituir os CDs convencionais. Primeiro apostou-se no SACD, o SuperAudio CD, reproduzido somente em equipamentos especiais. Depois foi desenvolvido o SACD híbrido, que também pode ser tocado em CD-players. Outras empresas jogaram suas fichas no DVD-Áudio, mas o alto preço continuou não animando os compradores. Agora, algumas empresas estão depositando suas esperanças no DualDisc, que começa a ser adotada por gravadoras brasileiras. E foi o escolhido, pelo selo Legacy, para novos lançamentos focalizando a saudosa cantora & pianista Nina Simone e o jovem trompetista Chris Botti.
Para quem ainda não está familiarizado com o formato, uma rápida explicação: CD de um lado, DVD do outro. No mesmo disco! E você não precisa comprar um equipamento específico de reprodução, desde que o seu DVD-player também reproduza CDs – coisa que quase todos os modelos, mesmo os mais baratos, fazem. Para o mercado, a grande vantagem é que inúmeros títulos, ao serem reeditados em DualDisc, seduzirão mais compradores do que se relançados num CD convencional. Isto porque, no “lado DVD”, o conteúdo musical vem ampliado pela parte visual que pode incluir clips, entrevistas, galeria de fotos etc. Tudo isso com som surround, já que as remixagens (sempre que multi-track tapes estejam disponíveis) serão feitas para sistema Dolby Surround 5.1, proporcionando uma trip sonora multi-dimensional.
Voz inconfundível
Para inaugurar os lançamentos em DualDisc, o selo Legacy, responsável por cuidar do acervo jazzístico da Sony/BMG, escolheu em 2005 as obras-primas “Kind of blue”, de Miles Davis, e “Time out”, de Dave Brubeck, dois best-sellers do catálogo jazzístico da Columbia. Agora, dois outros títulos chegam às lojas: a compilação “The soul of Nina Simone” – produzida por Barry Feldman e calcada nos maiores hits gravados pela tão notável quanto controvertida artista em sua fase na RCA, entre 1968 e 1974 – e “To love again”, do trompetista Chris Botti cercado por cantores pop (entre eles Sting, Paula Cole e Gladys Knight) em uma estética sonora destinada aos consumidores do chamado smooth-jazz.
Mais uma vez o pessoal do Legacy capricha nas embalagens. Excelente texto de James Gavin (atualmente escrevendo a biografia de Lena Horne para a editora Simon & Schuster, e autor de “No fundo de um sonho: a longa noite de Chet Baker”, na tradução impecável do expert Roberto Mugiatti) e fotos raras estão presentes no livreto que esmiúça a trajetória única de Eunice Kathleen Waymon (1933-2003), mais conhecida pela alcunha de Nina Simone. Tudo devidamente remixado e remasterizado em 5.1 pelos engenheiros Mark Wilder e Woody Pornpitaksuk, ampliando freqüências e transparências sem o excesso de compressão que geralmente destrói nuances e sutilezas.
A voz inconfundível e inimitável de Nina arranha corações e mentes ao longo das 15 faixas do “lado CD”. Algumas – “Since I fell for you”, “Don’t let me be misunterstood”, “My baby just cares for me”, “Porgy and Bess medley” – são pungentes. Outras ficam longe disso, especialmente a apática versão (a única extraída do disco “Silk & soul”, de 1967) para “The look of love”, hit de Burt Bacharach tratado displicentemente, como se a RCA a tivesse obrigado a gravar a música. Sua inclusão é tão injustificável quanto a exclusão de faixas do impecável álbum “Baltimore”, gravado em Bruxelas, em 1978, para o selo CTI, hoje pertencente ao acervo da Sony/BMG.
Emoção pura
“Since I fell for you”, “In the dark”, “My man’s gone now” e “I want a little sugar in my bowl” foram gravadas no mesmo dia (5 de Janeiro de 1967) para o LP “Nina Simone sings the blues”, com as excelsas presenças de Eric Gale (guitarra), Bob Bushnell (baixo), Bernard Purdie (bateria) e Buddy Lucas (gaita). “Feeling good” veio de “I put a spell on you”, álbum gravado para a Philips em 1965, trazendo datada orquestração de Hal Mooney. Voltando à fase da RCA temos a faixa-título do LP de 1967 “To love somebody” (um dos primeiros sucessos dos Bee Gees), com o monstro Chuck Rainey no baixo elétrico. “I think it’s going to rain today”, de Randy Newman, “Nobody’s fault but mine” (da própria cantora) e a pungente “I get a long without you very well” (standard do mestre Hoagy Carmichael) vieram do disco-solo “Nina Simone and piano!”, de 68.
“Just like Tom Thumb’s blues”, releitura rhythm & blues da canção de Bob Dylan, pertenceu originalmente ao álbum “To love somebody”, de 69, com presenças dos futuros fundadores do grupo Stone Alliance (Gene Perla e Don Alias) e do fiel escudeiro Al Shackman na condição de guitarrista e diretor musical, “cargos” que viria a ocupar até a morte de Nina. Entretanto, Al não aparece nos créditos da faixa mais recente da compilação: a regravação de “My baby just cares for me” (tema presente no álbum de estréia da cantora para o selo Bethlehem, em 1957, “Little girl blue”), retirada de um disco ao vivo em 1987 no então badalado Vine Street Bar & Grill, de Hollywood, onde Shirley Horn e Marlena Shaw também gravaram álbuns para a Verve. Encaixada em uma campanha publicitária televisiva do perfume Chanel nº 5, em toda a Europa, deu um novo fôlego à carreira de Simone. Foi a penúltima (e mais bem sucedida) tentativa de ressuscita-la comercialmente – a última ocorreu em 1993, bancada pela Elektra, através do CD “A single woman”.
Imagens inéditas
“The soul of Nina Simone” já alcançou o vigésimo-terceiro lugar na parada de jazz da Billboard, atraindo muitos compradores também pelas faixas inéditas, gravadas ao vivo: “Don’t let me be misunderstood”, captada em 7 de abril de 1968 na Westbury Music Fair, e “Porgy and Bess medley”, ponto alto do Newport Jazz Festival em 7 de julho de 1963. Mas o maior atrativo do DualDisc reside no conteúdo, até então comercialmente inédito, do DVD. As primeiras imagens (em preto & branco) são da estréia de Nina na TV americana, via Ed Sullivan Show em 11 de setembro de 1960, entoando “Love me or leave me” e “I loves you Porgy” já em dramática e antológica releitura. Os músicos não são focalizados pelas câmeras, permanecendo inidentificáveis em dois takes filmados no clube Bitter End em 1968: “House of the rising sun” e “Go to hell”, manifesto da tolerância-zero típica da artista-ativista.
Os pontos altos, porém, ainda estão por vir em quatro números captados no Harlem Festival 1969, que entrou para a história como o “Woodstock negro”, organizado pelo empresário Hal Tuchin. Seis concertos com entrada franca levaram uma multidão de mais de 100 mil pessoas ao Central Park, para aplaudir Stevie Wonder, Mahalia Jackson, Sly & The Family Stone, Gladys Knight & The Pips, B.B. King e... Nina Simone! Em excelente forma, ela detonou temas que viraram hinos nas lutas pelos direitos civis dos negros americanos. Petardos tipo “Revolution”, “Four women”, “Ain’t got no – I got life”, e o comovente manifesto pela igualdade racial “To be young, gifted and black”. A bandaça que a acompanha é um atrativo à parte, incluindo jazzmen em ascenção tipo Don Alias (ainda em sua época como baterista, às vésperas de gravar “Bitches brew” com Miles Davis), Clint Houston (futuro baixista de Stan Getz), o multi-instrumentista Weldon Irvine (aqui atacando no órgão, ele seria redescoberto pela cena acid-jazz nos anos 90 e elevado à condição de ícone do jazz-funk) e Jumma Santos (congas).
Burocracia musical
Toda a emoção abundante no DualDisc de Nina Simone falta ao asséptico DD de Chris Botti, “To love again”, oitavo trabalho-solo do trompetista adorado pela turma do smooth-jazz. Desta vez, as insossas programações eletrônicas típicas do estilo – forjado pela turminha da GRP nos anos 80 – são substituídas por burocráticas orquestrações de efeito igualmente soporífero. O repertório é primoroso, composto exclusivamente por standards. No CD-Side, há quatro faixas instrumentais (“Embraceable you”, “What’s new?”, “To love again” e “I’ll be seeing you”). Nas demais, díspares convidados, escolhidos aleatoriamente pelo produtor Bobby Colomby, são responsáveis por derrubar artisticamente o projeto ao mesmo tempo em que o transformam em um triunfo comercial que chegou ao topo da parada de jazz e ao décimo-oitavo lugar na lista pop da Billboard.
Nem mesmo o refinado roqueiro Sting se salva, soando constrangedor ao tentar interpretar “What are you doing the rest of your life?”, uma das obras-primas de Michel Legrand com letra do casal Alan & Marylin Bergman. (Para não parecer preconceito, vale lembrar que Sting obteve excelente resultado ao recriar outra maravilha de Legrand, “The windmills of your mind”, para a refilmagem de “Thomas Crown affair” em 1999). Outras figuras onipresentes neste tipo de projeto, Paula Cole e Michael Bublé, afundam respectivamente “My one and only love” e “Let there be love”. Jill Scott banaliza “Good morning heartache”, Paul Buchanan (do grupo Blue Nile) derrapa em “Are you lonesome tonighy?”, Renne Olstead patina em “Pennies from heaven” e Rosa Passos soa pouco à vontade em “Here’s that rainy day”. Nada que supere o completo equívoco de colocar Steven Tyler (do Aerosmith) cantando “Smile”. Para quem cresceu ouvindo a singela canção de Chaplin na voz de Tony Bennett, agüentar a “interpretação” do roqueiro é um suplício.
Arranjos açucarados
Os arranjos, executados pela London Session Orchestra, são primários, açucarados, carentes de inventividade e ousadia. Assinados por nomes competentes como Jeremy Lubbock, Gil Goldstein e Billy Childs, não saem do terreno do que antigamente se chamava “easy-listening” ou, no Brasil, “música de elevador”, sem comparação com o que gênios do porte de Claus Ogerman, Don Sebesky ou Johnny Mandel poderiam conseguir com material semelhante. O DVD-Side mostra visualmente outras deficiências, ao captar quatro músicas filmadas em estúdio, sem platéia: “To love again”, “I’ll be seeing you” (em versões diferentes das incluídas no CD) e duas outras disponíveis apenas em vídeo – “Flamengo sketches” (esta com razoável participação de David Sanborn) e “Milestones”, adicionada talvez para mostrar que Botti pode tocar jazz straight-ahead.
Até pode, mas continua sem sal, fazendo charme para a câmera em poses forçadas de um galã que imita gestos de Chet Baker – sem o carisma do viciado. Visualmente, a qualidade da filmagem, realizada no estúdio da Capitol, em Los Angeles, é excelente em termos de edição e iluminação, prejudicada apenas pela apatia dos músicos de base (não há orquestra nesses takes). Billy Childs (piano), Bob Hurst (contrabaixo), Billy Kilson (bateria) e o guitarrista Anthony Wilson, único branco do grupo além do louro Botti, adotam aquela postura característica dos “young lions” almofadinhas da geração Marsalis, uma mistura de arrogância com olhar de superioridade e falsa naturalidade. O engenheiro de som Al Scmitt, o preferido de Tommy LiPuma, mais uma vez arrasa na mixagem, obtendo uma qualidade sonora extraordinária. Pena que desperdiçada em uma superprodução de conteúdo tão chinfrim.
Legendas:
O DualDisc de Nina Simone inclui show inédito no Harlem Festival em 1969
Chris Botti: desastre artístico, mas sucesso comercial
Várias novas tecnologias estão sendo estudadas para encontrar a mídia que, em um futuro próximo, poderia vir a substituir os CDs convencionais. Primeiro apostou-se no SACD, o SuperAudio CD, reproduzido somente em equipamentos especiais. Depois foi desenvolvido o SACD híbrido, que também pode ser tocado em CD-players. Outras empresas jogaram suas fichas no DVD-Áudio, mas o alto preço continuou não animando os compradores. Agora, algumas empresas estão depositando suas esperanças no DualDisc, que começa a ser adotada por gravadoras brasileiras. E foi o escolhido, pelo selo Legacy, para novos lançamentos focalizando a saudosa cantora & pianista Nina Simone e o jovem trompetista Chris Botti.
Para quem ainda não está familiarizado com o formato, uma rápida explicação: CD de um lado, DVD do outro. No mesmo disco! E você não precisa comprar um equipamento específico de reprodução, desde que o seu DVD-player também reproduza CDs – coisa que quase todos os modelos, mesmo os mais baratos, fazem. Para o mercado, a grande vantagem é que inúmeros títulos, ao serem reeditados em DualDisc, seduzirão mais compradores do que se relançados num CD convencional. Isto porque, no “lado DVD”, o conteúdo musical vem ampliado pela parte visual que pode incluir clips, entrevistas, galeria de fotos etc. Tudo isso com som surround, já que as remixagens (sempre que multi-track tapes estejam disponíveis) serão feitas para sistema Dolby Surround 5.1, proporcionando uma trip sonora multi-dimensional.
Voz inconfundível
Para inaugurar os lançamentos em DualDisc, o selo Legacy, responsável por cuidar do acervo jazzístico da Sony/BMG, escolheu em 2005 as obras-primas “Kind of blue”, de Miles Davis, e “Time out”, de Dave Brubeck, dois best-sellers do catálogo jazzístico da Columbia. Agora, dois outros títulos chegam às lojas: a compilação “The soul of Nina Simone” – produzida por Barry Feldman e calcada nos maiores hits gravados pela tão notável quanto controvertida artista em sua fase na RCA, entre 1968 e 1974 – e “To love again”, do trompetista Chris Botti cercado por cantores pop (entre eles Sting, Paula Cole e Gladys Knight) em uma estética sonora destinada aos consumidores do chamado smooth-jazz.
Mais uma vez o pessoal do Legacy capricha nas embalagens. Excelente texto de James Gavin (atualmente escrevendo a biografia de Lena Horne para a editora Simon & Schuster, e autor de “No fundo de um sonho: a longa noite de Chet Baker”, na tradução impecável do expert Roberto Mugiatti) e fotos raras estão presentes no livreto que esmiúça a trajetória única de Eunice Kathleen Waymon (1933-2003), mais conhecida pela alcunha de Nina Simone. Tudo devidamente remixado e remasterizado em 5.1 pelos engenheiros Mark Wilder e Woody Pornpitaksuk, ampliando freqüências e transparências sem o excesso de compressão que geralmente destrói nuances e sutilezas.
A voz inconfundível e inimitável de Nina arranha corações e mentes ao longo das 15 faixas do “lado CD”. Algumas – “Since I fell for you”, “Don’t let me be misunterstood”, “My baby just cares for me”, “Porgy and Bess medley” – são pungentes. Outras ficam longe disso, especialmente a apática versão (a única extraída do disco “Silk & soul”, de 1967) para “The look of love”, hit de Burt Bacharach tratado displicentemente, como se a RCA a tivesse obrigado a gravar a música. Sua inclusão é tão injustificável quanto a exclusão de faixas do impecável álbum “Baltimore”, gravado em Bruxelas, em 1978, para o selo CTI, hoje pertencente ao acervo da Sony/BMG.
Emoção pura
“Since I fell for you”, “In the dark”, “My man’s gone now” e “I want a little sugar in my bowl” foram gravadas no mesmo dia (5 de Janeiro de 1967) para o LP “Nina Simone sings the blues”, com as excelsas presenças de Eric Gale (guitarra), Bob Bushnell (baixo), Bernard Purdie (bateria) e Buddy Lucas (gaita). “Feeling good” veio de “I put a spell on you”, álbum gravado para a Philips em 1965, trazendo datada orquestração de Hal Mooney. Voltando à fase da RCA temos a faixa-título do LP de 1967 “To love somebody” (um dos primeiros sucessos dos Bee Gees), com o monstro Chuck Rainey no baixo elétrico. “I think it’s going to rain today”, de Randy Newman, “Nobody’s fault but mine” (da própria cantora) e a pungente “I get a long without you very well” (standard do mestre Hoagy Carmichael) vieram do disco-solo “Nina Simone and piano!”, de 68.
“Just like Tom Thumb’s blues”, releitura rhythm & blues da canção de Bob Dylan, pertenceu originalmente ao álbum “To love somebody”, de 69, com presenças dos futuros fundadores do grupo Stone Alliance (Gene Perla e Don Alias) e do fiel escudeiro Al Shackman na condição de guitarrista e diretor musical, “cargos” que viria a ocupar até a morte de Nina. Entretanto, Al não aparece nos créditos da faixa mais recente da compilação: a regravação de “My baby just cares for me” (tema presente no álbum de estréia da cantora para o selo Bethlehem, em 1957, “Little girl blue”), retirada de um disco ao vivo em 1987 no então badalado Vine Street Bar & Grill, de Hollywood, onde Shirley Horn e Marlena Shaw também gravaram álbuns para a Verve. Encaixada em uma campanha publicitária televisiva do perfume Chanel nº 5, em toda a Europa, deu um novo fôlego à carreira de Simone. Foi a penúltima (e mais bem sucedida) tentativa de ressuscita-la comercialmente – a última ocorreu em 1993, bancada pela Elektra, através do CD “A single woman”.
Imagens inéditas
“The soul of Nina Simone” já alcançou o vigésimo-terceiro lugar na parada de jazz da Billboard, atraindo muitos compradores também pelas faixas inéditas, gravadas ao vivo: “Don’t let me be misunderstood”, captada em 7 de abril de 1968 na Westbury Music Fair, e “Porgy and Bess medley”, ponto alto do Newport Jazz Festival em 7 de julho de 1963. Mas o maior atrativo do DualDisc reside no conteúdo, até então comercialmente inédito, do DVD. As primeiras imagens (em preto & branco) são da estréia de Nina na TV americana, via Ed Sullivan Show em 11 de setembro de 1960, entoando “Love me or leave me” e “I loves you Porgy” já em dramática e antológica releitura. Os músicos não são focalizados pelas câmeras, permanecendo inidentificáveis em dois takes filmados no clube Bitter End em 1968: “House of the rising sun” e “Go to hell”, manifesto da tolerância-zero típica da artista-ativista.
Os pontos altos, porém, ainda estão por vir em quatro números captados no Harlem Festival 1969, que entrou para a história como o “Woodstock negro”, organizado pelo empresário Hal Tuchin. Seis concertos com entrada franca levaram uma multidão de mais de 100 mil pessoas ao Central Park, para aplaudir Stevie Wonder, Mahalia Jackson, Sly & The Family Stone, Gladys Knight & The Pips, B.B. King e... Nina Simone! Em excelente forma, ela detonou temas que viraram hinos nas lutas pelos direitos civis dos negros americanos. Petardos tipo “Revolution”, “Four women”, “Ain’t got no – I got life”, e o comovente manifesto pela igualdade racial “To be young, gifted and black”. A bandaça que a acompanha é um atrativo à parte, incluindo jazzmen em ascenção tipo Don Alias (ainda em sua época como baterista, às vésperas de gravar “Bitches brew” com Miles Davis), Clint Houston (futuro baixista de Stan Getz), o multi-instrumentista Weldon Irvine (aqui atacando no órgão, ele seria redescoberto pela cena acid-jazz nos anos 90 e elevado à condição de ícone do jazz-funk) e Jumma Santos (congas).
Burocracia musical
Toda a emoção abundante no DualDisc de Nina Simone falta ao asséptico DD de Chris Botti, “To love again”, oitavo trabalho-solo do trompetista adorado pela turma do smooth-jazz. Desta vez, as insossas programações eletrônicas típicas do estilo – forjado pela turminha da GRP nos anos 80 – são substituídas por burocráticas orquestrações de efeito igualmente soporífero. O repertório é primoroso, composto exclusivamente por standards. No CD-Side, há quatro faixas instrumentais (“Embraceable you”, “What’s new?”, “To love again” e “I’ll be seeing you”). Nas demais, díspares convidados, escolhidos aleatoriamente pelo produtor Bobby Colomby, são responsáveis por derrubar artisticamente o projeto ao mesmo tempo em que o transformam em um triunfo comercial que chegou ao topo da parada de jazz e ao décimo-oitavo lugar na lista pop da Billboard.
Nem mesmo o refinado roqueiro Sting se salva, soando constrangedor ao tentar interpretar “What are you doing the rest of your life?”, uma das obras-primas de Michel Legrand com letra do casal Alan & Marylin Bergman. (Para não parecer preconceito, vale lembrar que Sting obteve excelente resultado ao recriar outra maravilha de Legrand, “The windmills of your mind”, para a refilmagem de “Thomas Crown affair” em 1999). Outras figuras onipresentes neste tipo de projeto, Paula Cole e Michael Bublé, afundam respectivamente “My one and only love” e “Let there be love”. Jill Scott banaliza “Good morning heartache”, Paul Buchanan (do grupo Blue Nile) derrapa em “Are you lonesome tonighy?”, Renne Olstead patina em “Pennies from heaven” e Rosa Passos soa pouco à vontade em “Here’s that rainy day”. Nada que supere o completo equívoco de colocar Steven Tyler (do Aerosmith) cantando “Smile”. Para quem cresceu ouvindo a singela canção de Chaplin na voz de Tony Bennett, agüentar a “interpretação” do roqueiro é um suplício.
Arranjos açucarados
Os arranjos, executados pela London Session Orchestra, são primários, açucarados, carentes de inventividade e ousadia. Assinados por nomes competentes como Jeremy Lubbock, Gil Goldstein e Billy Childs, não saem do terreno do que antigamente se chamava “easy-listening” ou, no Brasil, “música de elevador”, sem comparação com o que gênios do porte de Claus Ogerman, Don Sebesky ou Johnny Mandel poderiam conseguir com material semelhante. O DVD-Side mostra visualmente outras deficiências, ao captar quatro músicas filmadas em estúdio, sem platéia: “To love again”, “I’ll be seeing you” (em versões diferentes das incluídas no CD) e duas outras disponíveis apenas em vídeo – “Flamengo sketches” (esta com razoável participação de David Sanborn) e “Milestones”, adicionada talvez para mostrar que Botti pode tocar jazz straight-ahead.
Até pode, mas continua sem sal, fazendo charme para a câmera em poses forçadas de um galã que imita gestos de Chet Baker – sem o carisma do viciado. Visualmente, a qualidade da filmagem, realizada no estúdio da Capitol, em Los Angeles, é excelente em termos de edição e iluminação, prejudicada apenas pela apatia dos músicos de base (não há orquestra nesses takes). Billy Childs (piano), Bob Hurst (contrabaixo), Billy Kilson (bateria) e o guitarrista Anthony Wilson, único branco do grupo além do louro Botti, adotam aquela postura característica dos “young lions” almofadinhas da geração Marsalis, uma mistura de arrogância com olhar de superioridade e falsa naturalidade. O engenheiro de som Al Scmitt, o preferido de Tommy LiPuma, mais uma vez arrasa na mixagem, obtendo uma qualidade sonora extraordinária. Pena que desperdiçada em uma superprodução de conteúdo tão chinfrim.
Legendas:
O DualDisc de Nina Simone inclui show inédito no Harlem Festival em 1969
Chris Botti: desastre artístico, mas sucesso comercial
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