Wednesday, June 6, 2007

Mergulhando no jazz dos anos 70



Mergulhando no jazz dos anos 70
"Bill Evans, Joe Farrell e Paul Desmond são focalizados pela “CTI Timeless Collection”
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 16 de Maio de 2007 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa" em 21 de Maio de 2007

Graças à quebra de barreiras da internet, lojas virtuais de todo o mundo estão recebendo a nova safra da série “CTI Timeless Collection”, organizada na Ásia pela distribuidora King Records. Como sempre acontece em relançamentos japoneses, todos os CDs usam as mixagens originais (de Rudy Van Gelder) e reproduzem as capas dos LPs - criadas, em sua maioria, pelo fotógrafo Pete Turner em fabulosa dobradinha com o artista gráfico Bob Ciano. Novos textos, encomendados pelo produtor Susumu Morikawa, estão adicionados às liner-notes escritas para as edições em vinil. Além de discos lendários de nomes como Paul Desmond, Bill Evans, Chet Baker, Art Farmer, Joe Farrell e Freddie Hubbard, este novo pacote inclui a compilação “Star Borne”, selecionada pelos DJs japoneses do Kyoto Jazz Massive.

Face mainstream

Uma das maiores bobagens apregoadas pelos detratores de Creed Taylor, fundador da CTI, é a de que o produtor somente se interessou pelo “comercial” mercado do fusion. Tremenda ignorância, claro, de quem desconhece sua atuação nos selos que dirigiu (Bethlehem, ABC, Impulse! e Verve) antes de criar a CTI. Espertamente – para não usar o termo mau-caratismo mesmo, característico destes boçais – sempre que se referem a discos antológicos tipo “Focus” (Stan Getz), “Africa brass” (John Coltrane), “Blues and the abstract truth” (Oliver Nelson), “Out of the cool” (Gil Evans) e “Conversations with myself” (Bill Evans) os pilantras não mencionam o fato de Creed ter sido o produtor e idealizador de todas estas obras-primas.

Mesmo na CTI, companhia que virou sinônimo de fusion-jazz ao focar prioritariamente nesta seara, Taylor jamais deixou de prestigiar estilos como o mainstream e o cool-jazz. Volta e meio patrocinou trabalhos de alguns de seus músicos favoritos, como Paul Desmond, Art Farmer e Bill Evans, apesar do retorno comercial propiciado por estes artistas ser infinitamente menor ao de Bob James, George Benson ou Hubert Laws. Por exemplo: no início dos anos 60, Creed não sossegou enquanto não tirou Bill Evans da Riverside para coloca-lo no cast da Verve, onde produziu, além do já citado “Conversations...”, os belíssimos “Empathy” e “Bill Evans with symphony orchestra”, entre outros.

Voltaram a somar forças quando Helen Keane, empresária de Bill que passara também a produzir os discos do pianista, ofereceu a Creed os direitos sobre o show de Evans no Festival de Montreux em 19 de junho de1970, dois anos depois da aclamada primeira apresentação do músico no evento criado por Claude Nobs. Taylor comprou a idéia de imediato, levando as fitas para serem mixadas por Van Gelder e lançando “Montreux II”, agora remasterizado em 24bits. O repertório funcionou tão bem que passou a servir de base para os concertos de Bill durante toda aquela década, abrigando jóias como “Very early”, “Alfie”, “How my heart sings”, “Israel”, “I hear a rhapsody” e “Peri’s scope”, na qual o solo do batera Marty Morell, plenamente integrado ao baixista Eddie Gomez, leva a platéia ao delírio.

Sax celestial

Outro mestre por quem Creed sempre nutriu profunda admiração, Paul Desmond gravou quatro discos (como líder) para o produtor: dois na época da A&M e mais dois na fase em que a CTI já pagara a sua carta de alforria a Herb Alpert. “Skylark”, captado em 1973, traz o guitarrista húngaro Gabor Szabo como convidado especial, provocando interessante contraste de estilos. O time é completado por Ron Carter, Jack DeJohnette (perfeito em “Take ten”), Ralph MacDonald (fornecendo o tempero brasileiro à “Was a sunny day”), Gene Bertoncini (como sempre impecável no violão, brilhando em “Romance de amor”, tema do filme “Brinquedo proibido” de 1952) e George Ricci, cujo violoncelo atua em contraponto com o sax e a guitarra em “Music for a while”, adaptação de Don Sebesky para uma peça do século XVII composta por Henry Purcell, designado “o pai da música inglesa”.

“Pure Desmond”, de 1974, é um perfeito exemplar de cool-jazz. Liderando um “piano-less quartet” com o batera Connie Kay, o guitarrista canadense Ed Bickert e novamente Ron Carter no baixo, Paul aplica a sonoridade dry-martini de seu sax-alto a “I’m old fashioned”, “Nuages”, “Everything I love”, “Warm valley”, “Mean to me”, “Till the clouds roll by” e outras pérolas.

Como sideman, Paul ajuda a engrandecer ainda mais “She was too good to me”, discaço também de 74 que marcou a ressurreição de Chet Baker, assessorado por Ron, Steve Gadd, Jack DeJohnette, Bob James e Hubert Laws. Supra-sumo da elegância, perfeito da primeira à última nota, inclui recriações brilhantes de “Autumn leaves”, “Tangerine”, “It’s you or no one”, “With a song in my heart” e duas músicas cantadas sedutoramente por Baker: “What’ll I do” e a faixa-título, estas duas com Sebesky adicionando sutis arranjos para cordas e instrumentinos.

Chet mostra-se em ótima forma em “Studio trieste”, gravado ao lado de Jim Hall e Hubert Laws em 1982, quando muitos já o consideravam acabado. E aí entra a questão da importância do produtor: alguns discos da fase final de Baker foram realmente fraquíssimos, mas Creed soube como fazer o trompetista brilhar nas releituras de “All blues”, “Django” e até na adaptação de “O lago dos cisnes”, de Tchaikowsky. Jim Hall, estimulado por Jorge Dalto, Gary King, Steve Gadd e Sammy Figueroa, estraçalha em “Malagueña”, da qual Baker e Laws ficam de fora.

Flautas mágicas

Hubert Laws está representado, como líder, por dois álbuns de concepções inteiramente distintas. “The rite of spring”, obra-de-arte concebida em 1971, marcou a definitiva consagração do flautista graças às virtuosísticas atuações em adaptações de Sebesky para obras de Stravinsky (“A sagração da primavera”), Bach (“Concerto de Brandenburgo nº 3”), Fauré (“Pavane”) e Debussy (uma estonteante performance sem acompanhamento, sobrepondo três flautas, em “Syrinx”). Nas demais, brilham também Carter, DeJohnette, Bertoncini e Bob James, que toca até cravo! Tempos depois, Bob viria a assinar os arranjos de “The Chicago theme”, de 1975, utilizando elementos da disco-music que despontava no mercado. Novamente um time de all-stars entra em campo ao lado de Hubert (Stanley Clarke, Steve Gadd, George Benson, David Sanborn, Eric Gale, Joe Beck e os irmãos Brecker), ajudando a valorizar “Midnight at the oasis”, “You make me feel brand new” e “Going home”, que muitos julgham ser um spiritual mas na verdade é o segundo movimento da “Sinfonia do novo mundo” do tcheco Antonin Dvorak.

Flauta, flautim, sax soprano e sax tenor são os instrumentos utilizados por Joe Farrell (que também tocava oboé e sax barítono) em “Outback”, irretocável sessão de 1971 com Chick Corea (autor de “Bleeding orchid”), Buster Williams, Elvin Jones (famoso solo em “November 68th”) e Airto, perfeito até nas castanholas. Ainda falando de sopros, o som inigualável de Art Farmer no flugelhorn, somado à guitarra low-profile de Jim Hall, chega às raias do sublime em “Big blues”, de 1978. O vibrafone de Mike Mainieri supre a ausência de teclados, com o quinteto completado por Michael Moore (o baixista, não o cineasta) e Steve Gadd. Colocando em prática o conceito de “less is more”, o arranjador David Matthews revela seu talento nos scores para “Whisper not”, “A child is born” e uma adaptação para “Pavane for a dead princess”, de Maurice Ravel.

Trompetista que viveu o auge de sua carreira na CTI, Freddie Hubbard encontra-se representado por três CDs. “Red clay”, sua estréia na gravadora em 1970, traz quatro longas faixas que comprovam o talento do líder também como compositor. Tanto que o tema-título virou, instantaneamente, um standard do jazz contemporâneo. Na linda balada “Delphia”, Herbie Hancock troca o piano elétrico pelo órgão, enquanto Joe Henderson passa do sax tenor para a flauta. O disco também ajudou a consagrar o então novato batera Lenny White, explosivo em “Suite Sioux” e “The intrepid fox”, sem se intimidar pela presença do já veterano Ron Carter.

Quando Freddie trocou a CTI por um contrato milionário com a Columbia, em 1974, Creed Taylor tratou de lançar material inédito, espertamente arquivado. “Polar AC” reúne faixas de várias sessões no período 71-73, valendo destacar as releituras para “Betcha by golly wow” e “People make the world go round”, sucessos da black-music compostos pela dupla Thom Bell & Linda Creed, artífices do chamado “som da Filadélfia”. Entre os músicos, os craques habituais: Carter, White, DeJohnette, Cobham, Benson, Airto e ainda o subestimado tenorista Junior Cook, ouvido num grande solo em “Son of sky dive”.

Organizada pela dupla Shuya & Yoshihiro Okino, DJs que formam o Kyoto Jazz Massive, a coletânea “Star borne” traz um longo subtítulo: “a collection of black fusion from CTI & Kudu”. No recheio entram a frenética “Skyscrapers” (Eumir Deodato), o balanço sedutor de “People make the world go round” (na versão de Milt Jackson), a misteriosa “Povo” de Freddie Hubbard (com a enigmática prece de Airto na introdução e a fulminante linha de baixo de Ron Carter), mais doses duplas do congueiro Ray Barretto (ao lado de luminares do jazz latino como Tito Puente e Charlie Palmieri em “Mambotango” – erroneamente grafada “Mambot tangot” – e “Pastime paradise”) e de Johnny Hammond, que troca o Hammond pelo Fender Rhodes em “Star borne” e “Gambler’s life”. Porém, apenas duas faixas pertencem a discos ainda não relançados em CD: “Could heaven ever be like this”, hit do álbum “Turn this mutha out” do baterista Idris Muhammad, e uma sensacional versão (de 13 minutos!) para “Too high”, em um jam comandada pelo sax soprano de Joe Farrell no LP “Penny árcade”. O solo de Herbie Hancock no Rhodes já valeria, por si só, a aquisição do CD. Esbaldem-se!

Legandas:
“Montreux II”, gravado em 1970, comprova o eterno poder de fascinação de Bill Evans
A coletânea “Star borne”, organizada pelos DJs do Kyoto Jazz Massive, reúne sucessos de Joe Farrell, Idris Muhammad e Johnny Hammond

No comments:

Post a Comment