A aurora de Jobim
Caixa reúne três belos CDs pouco valorizados
Arnaldo DeSouteiro
Caixa reúne três belos CDs pouco valorizados
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiros em 28 de Julho de 2006 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
Os três discos de Tom Jobim em sua primeira fase na Warner, na segunda metade dos anos 60, tiveram uma trajetória, digamos, conturbada. Nunca usufruíram do prestígio das sessões iniciais para a Verve – leia-se a estréia-solo altamente elogiada via “The composer of Desafinado, plays” e a contribuição fundamental para o êxito do multi-Grammyado “Getz/Gilberto”. Tampouco tornaram-se cultuados na esfera jazzística, que até hoje se derrete por “Tide” e principalmente “Stone flower”. Motivos não faltaram. Desvenda-los parece agora uma nobre missão, no momento em que “The wonderful world of Antonio Carlos Jobim”, “A certain Mr. Jobim” e “Love, strings and Jobim” voltam ao mercado reunidos em uma caixa batizada “The prime of Antonio Carlos Jobim”, lançada pelo selo californiano DBK Works. Estranhamente, a foto da capa (tirada em 1973) não corresponde ao período 1965-67 das gravações.
Inveja e patrulhamento
Começando pelo começo, convém lembrar que os LPs originais foram muito mal recebidos no Brasil. Parte da mídia invejosa, ignorou-os. A outra parte, rancorosa, esculhambou-os. Exatamente como ainda procede hoje com os brasileiros que verdadeiramente honram o nome do país no exterior. E naquela época, vale lembrar, Tom Jobim não era visto com essa simpatia toda adquirida post-mortem. Muito ao contrário. Na verdade, foi o período em que mais sofreu com as acusações imbecis de ser “americanizado” e “vendido ao imperialismo”, para ficar apenas nas mais suaves. Situação que iria se agravar após o primeiro disco com Sinatra, fatal para que os complexados de plantão (aí incluídos os “expoentes” dos segundo e terceiro escalões da bossa) tentassem de tudo para crucifica-lo.
A antipatia despertada por Tom merecia uma tese psicanalítica, e um farto material para análise está contido no depoimento, poucos meses antes de sua morte, para o programa “Roda viva”. A TV Cultura vende cópias em DVD e quem se interessar vai ficar pasmo com o conteúdo dos comentários do mestre sobre a imprensa, e vice-versa. Em alguns episódios, como a cessão de direitos de “Águas de março” para um comercial de refrigerante, o patrulhamento transformava-se em perseguição implacável. O clima só começou a ficar mais ameno quando Tom construiu uma nova imagem nos anos 80, usando chapéu de palha, deixando-se fotografar indo à farmácia, e criando o personagem da Cobal tão ao agrado da burguesia carioca.
Voltando aos discos em questão – todos de curta duração, nunca ultrapassando meia-hora – os títulos eram de gosto duvidoso. “The wonderful world of Antonio Carlos Jobim”, que ainda vinha acrescido do subtítulo “The Brazilian mood – with Nelson Riddle”, soava pomposo e egóico, somado a um olhar languidamente sensual em excelente foto de Ed Thrasher. Na contracapa, uma pose de latin-lover, cantando e tocando violão. As liner-notes de Stan Cornyn começavam constrangedoras: “A slight unvarnished young man, looks deceptively young for so much fame, so much talent”. Sentiram a barra? Felizmente, este relançamento, produzido por Pat Thomas, preserva todos os textos e as capas originais, exceto a de “Love, strings and Jobim”.
Jóias menosprezadas
Uma pequena biografia de Tom foi encomendada à pesquisadora americana Terri Hinte, mas o texto da brasilianista aparece estranhamente dividido entre os três discos. Uma parte em cada livreto. E, pior, sem que os comentários se encaixem ao CD que o ouvinte tem em mãos. As referências a “The wonderful world” estão na capa de “Love...”, as de “Love” no encarte de “A certain...” Não há menção ao pouco caso que a própria Warner americana viria a fazer destes trabalhos nos anos 80, quando, após o fracasso comercial do álbum-duplo “Terra brasilis”, perdeu o interesse no trabalho de Jobim. Tanto que, por uma ninharia, vendeu as matrizes de “The wonderful world” e “A certain Mr. Jobim” ao pequeno selo Discovery, do rabugento produtor Albert Marx, em 1986. Marx relançou ambos no formato CD em 1992, com novas (e piores) capas.
Por uma grande ironia, quando Marx faleceu e a família decidiu se disfazer do Discovery, quem comprou todo o acervo foi a Warner, levando de volta as matrizes Jobinianas. Juntou os dois discos, e mais as duas únicas canções de Tom gravadas em “Love, strings & Jobim”, e soltou nas lojas, em 1996, uma “compilação” batizada com título originalíssimo, “Composer”; por absoluta falta de imaginação ou para intencionalmente confundir o consumidor, buscando tirar vantagem da demanda constante pelo primervo “The composer of Desafinado, plays”, de 1963.
O próprio Tom criou grande expectativa em relação a “The wonderful world” (29m21s), por se tratar de seu segundo disco para o mercado internacional, o primeiro de um contrato de três anos para a então poderosíssima Warner (estava “mordido” porque a Verve não demonstrara interesse em um segundo LP), e também o primeiro com arranjos de seu ídolo Nelson Riddle. Excesso de expectativa em relação ao “maestro de Sinatra”, excesso de decepção. Jobim ficou frustrado com o resultado final do LP, gravado em agosto de 1965 em Los Angeles, sob a produção de Jimmy Hilliard, que pediu a Tom para cantar na maioria das faixas. Detalhe: a voz era gravada “ao vivo” no estúdio, enquanto ele se acompanhava ao violão. Sentiu o peso daquilo que, até hoje, ninguém no mundo sabe fazer como João Gilberto.
A informação de que Tom se decepcionara com Nelson vazou, virando um prato-feito para seus inimigos, prontos para alardear o fracasso da colaboração. Completo exagero. Os arranjos, embora sem o brilhantismo dos scores de Ogerman dois anos antes, ficaram bonitos. Nas bases, ótimas contribuições do baixista Don Payne, dos bateristas Dom Um Romão (o único citado no texto da contracapa original) e Paulinho Magalhães, e até a canja de João Donato em duas faixas. No cardápio, pérolas inéditas como “Bonita” e “Surfboard”, além da comovente “Valsa de Porto das Caixas” apenas com piano e orquestra, sem a seção rítmica.
Ray Gilbert, autor da letra original de “Bonita”, composta em homenagem a Candice Bergen, assinou as versões em inglês para “Ela é carioca” (charmosa interpretação de Tom na abertura do disco), “Inútil paisagem” e “Dindi”. Entraram ainda “Samba do avião”, “Por toda a minha vida”, “Água de beber” (Donato, omitido da ficha técnica, ao piano e Tom ao violão, repetindo o esquema da gravação deste mesmo tema que haviam feito, em janeiro daquele ano, para o LP de estréia-solo de Astrud Gilberto), “Só tinha de ser com você”, “A felicidade” e “O morro não tem vez”, registrada como “Favela” nos EUA.
Jornada em NY
Dois anos depois, em fevereiro de 1967, logo após terminar em LA o célebre “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”, Tom rumou para NY. Em três noites consecutivas, em uma igreja transformada em estúdio, novamente com Dom Um na bateria (exigência recorrente de TJ), Don Payne no baixo e arranjos de Claus Ogerman (os três também presentes à gravação com Sinatra), registrou as dez faixas de “A certain Mr. Jobim” (26m39s). A foto da contracapa é sensacional; mostra Tom, em pé, abraçado a Dom Um, com o engenheiro Frank Laico e os co-produtores George Lee & Ray Gilbert sentados em frente à mesa de gravação, parecendo uma cena de “Jornada nas estrelas”.
Tom não abriu mão de regravar “Bonita” (escolhida para faixa de abertura, em andamento muito rápido) e “Surfboard” (com Dick Hyman, colaborador freqüente de Woody Allen, pilotando o órgão Hammond), de tão insatisfeito que ficara com o rendimento destas faixas em “The wonderful world”. O assobio em “Outra vez” é de um refinamento desconcertante, páreo duro com a sensualidade de “Fotografia”, valorizada pela irretocável letra em inglês do tubarão Gilbert. Mal falado por conta de suas trapalhadas financeiras, Ray acertou em cheio também nas versões para “Esperança perdida” e “Por causa de você”, esta com o trombone aveludado de Urbie Green. “Estrada do sol” (outra parceria com Dolores Duran), “Desafinado” (arranjo grandiloquente na introdução), “Se todos fossem iguais a você” (instrumental) e a inédita “Zingaro” (“Retrato em branco e preto” após a letra de Chico Buarque) completam este belo disco de clima low-profile.
Golpe bem-sucedido
Entre “The wonderful world” e “A certain”, ambos por sinal bem menos easy-listening do que os instrumentais “The composer of Desafinado, plays” e “Wave”, a Warner lançou nos EUA, em 1966, “Love, strings and Jobim” (30m38s), que completa esta caixa “Prime”. Curiosamente, a capa original (anunciada no verso do encarte de “A certain Mr. Jobim”) foi substituída pela da reedição de 1975, que chegou a sair no Brasil pela Continental. Mais um subtítulo (“The eloquence of Antonio Carlos Jobim”), mais uma bisonha apresentação na contracapa (“The sensitive Jobim introduces new Brazilian hits”) e mais um texto bizarro de Stan Cornyn, que viaja na maionese. Diz que Tom passou três meses preparando o álbum, subindo os morros do Rio com seu Volksvagen em busca de três percussionistas negros que soubessem tocar “panderia”.
Também segundo o delirante Cornyn, no centro de tudo estavam o piano e o violão de Jobim. Tremenda cascata. Tom não tocou uma nota sequer neste disco, não passou pelo estúdio nem pra dizer alô, conforme informamos à Terri Hinte quando ela preparava o novo texto. O projeto foi todo de Aloysio de Oliveira (citado na contracapa como Louis Oliveira!), que concebeu o disco como um produto de exportação de seu selo Elenco, sob o título original de “Tom Jobim Apresenta” para dar visibilidade ao projeto e aos tais novos compositores supostamente selecionados por Tom. Entre eles, Durval Ferriara e Badin Powell (sic), assim citados na capa americana. Ray Gilbert já tinha acertado a distribuição nos EUA com a Warner, e aprontou a maior confusão ao atribuir o disco a Jobim, omitindo os nomes dos músicos (alguns poucos, os mais amigos de Aloysio, tinham sido citados na edição brasileira da Elenco).
Na verdade, o grande herói do disco, e personagem mais injustiçado desta falcatrua, foi o genial Maestro Gaya, arranjador de nove das doze faixas. Eumir Deodato (grafado na contracapa como Deodata), se encarregou de três scores: “Imagem”, “Morrer de amor” e “Tristeza de nós dois”, além de fazer os solos de piano, amparado por Sergio Barroso (baixo), Edson Machado (bateria) e Oscar Castro-Neves (violão). Os arranjos de Gaya são extraordinários, valendo destacar “Seu Encanto”, “Samba torto”, “Chuva” (Mauricio Einhorn na gaita), “Morte de um deus de sal”, “Eu preciso de você” e “Berimbau”, a obra-prima do álbum, em monumental orquestração, com a base reforçada pela marimba de Pinduca e a percussão de Russo do Pandeiro, sem piano. Coisa de gênio, mesmo sem Jobim.
Legendas:
“Tom Jobim, em foto de 1973, em caixa retrospectiva do período 1965-67”
“Belos discos, injustamente menosprezados, trazem arranjos de Nelson Riddle, Claus Ogerman e Lindolpho Gaya”.
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