Pegadas musicais do titã Wayne Shorter
“Livro e CD-duplo documentam a obra genial de uma mente brilhante”
Arnaldo DeSouteiro
“Livro e CD-duplo documentam a obra genial de uma mente brilhante”
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 31 de Março de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
Como todo verdadeiro mestre, Wayne Shorter está longe de ser uma unanimidade. Os puristas chatonildos, anorgásmicos em sua ignorância, execram toda a produção de Wayne pós-Blue Note, ou melhor, do período Weather Report. A geração fusion, musicalmente esclarecida e sem antolhos, contempla ambas as fases, mas tem absoluta certeza de que o titã atingiu um novo patamar criativo após a associação com Miles Davis. Quem quiser defender sua própria argumentação, não deve perder por nada o livro “Footprints: The Life And Music of Wayne Shorter”, de Michelle Mercer (editado pela Tarcher/Penguin em dezembro de 2004), cuja “trilha sonora” está no homônimo CD-duplo lançado agora pela Sony BMG.
Para quem tem medo de coletâneas, vale reproduzir a opinião do próprio Wayne sobre o projeto do produtor Richard Seidel: “Esta compilação representa o DNA da minha vida e obra”. Outros dados animadores? O próprio Wayne supervisionou o projeto, que documenta o período 1960-2000 através de 22 faixas gravadas para cinco selos diferentes. O excelente texto de apresentação do CD é assinado pela biógrafa de Wayne, não se limitando a comentários puramente técnicos. Ao contrário, seduz rapidamente o leitor graças a uma abordagem fascinante de uma das mentes mais criativas e uma das personalidades mais instigantes da história do jazz. Faltam algumas coisas, como os primeiros discos para o selo VeeJay, os concertos com o VSOP, a primeira formação do Weather Report. Mas todas as facetas de Shorter estão representadas.
Dos momentos como “sideman”, temos desde o tenorista que despontou como diretor musical do grupo Jazz Messengers, do lendário baterista Art Blakey, com quem tocou por cinco anos, até o ápice de originalidade na colaboração com Miles Davis, quando foram geradas composições imediatamente adotadas como jazz standards (“Footprints”, “Nefertiti”). Em uma segunda etapa com Miles, representada pelo emblemático “Sanctuary” de “Bitches brew”, emergiu o mais inovador e rascante som de sax-soprano desde Coltrane, ainda que, na opinião de alguns, incluindo este escriba, sem a limpidez de Steve Lacy. Como líder, Wayne pode ser ouvido nos tempos da Blue Note (anos 60), da Columbia nos anos 70 (o antológico “Native dancer” ao lado de Milton Nascimento), 80 e 90, e com seu atual quarteto na Verve. Sem falar de monumentais álbuns com o Weather Report, além das aparições com Joni Mitchell, Gil Evans, J.J. Johnson e o conjunto Steely Dan.
Do bop ao jazz-rock
A música que abre esta viagem pelo universo sonoro de Shorter, “Lester left town”, foi gravada originalmente no disco “Africaine”, o primeiro como saxofonista de Blakey. À medida em que a tocavam nos shows, iam fazendo mudanças, acelerando o andamento, tendo chegado ao ponto ideal no tempo da gravação (março de 1960) para um outro LP, “The big beat”. É um petardo típico dos “hard-drinking, hard-bop years”, nas palavras de WS, transcendendo o perfil do homenageado Lester Young, com o trompete de Lee Morgan unido ao tenor na linha de frente. As três faixas seguintes datam de 1964. “Speak no evil” e “Infant eyes”, na excelsa companhia de Herbie Hancock, Ron Carter, Elvin Jones e Freddie Hubbard (apenas em “Speak...”) são amostras da prolífica fase como líder na Blue Note – seis discos em um período de dezoito meses. Na biografia, Wayne não despreza mas também não venera tais LPs, vistos como representantes de seu crescimento como “cosmic philosopher”.
“Time of the barracudas”, faixa do conceitual “The individualism of Gil Evans”, produzido por Creed Taylor para a Verve – costumeira aula de instrumentação do demencializante arranjador (Kenny Burrell, Gary Peacock e Elvin Jones atiçam o solo de WS no tenor) – antecede os históricos registros com Miles em “E.S.P.” (65, faixa-título da estréia com Davis, sinuosa melodia construída em intervalos de quartas descendentes), “Footprints” (66, um blues de 12 compassos, em tom menor, e andamento 6/4, tocado sobre uma repetitiva linha de baixo) e “Nefertiti” (67, composta por Wayne ao piano), com Ron Carter, Herbie Hancock e Tony Williams completando o melhor grupo da história do jazz. Em 69, uma amostra da virada que enlouqueceu os tradicionalistas, “Sanctuary”, das sessões originárias de “Bitches brew”, marco-zero do “fusion”.
Eletrizantes performances
A amizade com o tecladista austríaco Joe Zawinul levou à formação do Weather Report no início de 1971, poucos meses após Wayne deixar Miles para cuidar dos sérios problemas de saúde de Iska, sua filha com a portuguesa Ana Maria, controvertida figura falecida na mal-explicada explosão de um avião da TWA, em 1996. Lamentavelmente, em uma das poucas falhas graves desta compilação – um CD-triplo teria resolvido o problema – são omitidas faixas do memorável LP de estréia do WR que incluía excelentes temas de Wayne, em especial “Eurydice” e “Tears”, com vocal de Airto Moreira. Nada tampouco de “I sing the body electric” ou “Live in Tokyo”, entrando apenas o tema-título de “Mysterious traveller” (74, com Dom Um Romão barbarizando na percussão, música que tive o privilégio de regravar, 24 anos depois, para o CD “Rhythm traveller”) e “Lusitanos” (outro patrício, Alyrio Lima Cova, assume o set percussivo).
No final de 1974, Shorter surpreendeu a todos com o LP “Native dancer”, que trazia Milton Nascimento como convidado especial em quatro faixas, entre elas “Ponta de areia” (WS demoraria onze anos para gravar outro álbum como líder, “Atlantis”, em 1985). Em 1976, a entrada do revolucionário baixista Jaco Pastorius no WR duplicou a popularidade (e o cachê) da banda, coincidindo com a conversão de Shorter ao budismo. Suas intervenções, geralmente no sax soprano, tornavam-se cada vez mais minimalistas e introspectivas, levando os críticos recalcados a alegar uma suposta “decadência”. Ouvindo faixas do nível de “Palladium” (dedicada ao clube, localizado na Rua 52, em NY, onde Wayne tocara nos anos 50 na banda latina de Nat Phipps) e “Elegant people”, não restam dúvidas sobre a demência senil dos detratores.
Wayne jamais foi (nem quis ser) um “músico de estúdio”, raramente aparecendo em discos alheios. Abriu exceção apenas para vários álbuns da amiga Joni Mitchell, aqui captada no fenomenal arranjo de Pastorius para “The dry cleaner from des moines”, extraído da obra-prima “Mingus” (79). Outra honrosa exceção, a faixa-título de “Aja” (77), do sofisticado grupo pop Steely Dan, contou com crepitante improviso de tenor (na verdade, a junção de dois solos), de frases angulares entrecortadas pela bateria de Steve Gadd.
Com o fim do Weather Report, Wayne retomou a carreira individual em 1985, lançando álbuns auto-produzidos com excesso de teclados e programações eletrônicas robotizadas. “The three Marias”, “Mahogany bird” e “Joy rider” retratam esta fase, enquanto “Children of the night” (95), apesar da grandiloquente orquestração, mostrou o compositor retornando ao mesmo nível de excelência do instrumentista, sendo Grammyado como “best contemporary jazz performance”. No ano seguinte, 96, Shorter participou da homenagem que lhe fez o trombonista-mor do bebop, J.J. Johnson, em seu derradeiro projeto, “Heroes”, lançado somente em 1999. Pela faixa “In walked Wayne”, WR abiscoitou o Grammy de “best jazz instrumental performance by a soloist”.
Outro prêmio Grammy tinha vindo um pouco antes, em 97, na categoria “best instrumental composition”, pela faixa “Aung San Suu kyi”, do hermético CD “1 + 1” em duo com o velho amigo Hancock, que o tirou do luto pela morte de Ana Maria. “Descobri que a melhor maneira de honrar a memória dela era me tornando o homem mais feliz na face da terra”, declara Wayne no livro. Nesta empreitada, formou um novo quarteto (com Danilo Perez, John Patitucci e Brian Blade), voltando à estrada em 2001. Entretanto, a faixa “Masqualero”, do disco “Footprints live!”, nem chega perto do registro original. Mas nosso herói segue feliz, agora morando com a nova esposa, a brasileira Carolina, em um condomínio de luxo em Miami, depois de três décadas em Los Angeles. Aos 71 anos, Wayne Shorter permanece, assim como o amigo, ídolo e fã Miles Davis, antenado com o presente e atento ao futuro. O jazz agradece.
Legendas:
“Biografia caprichada inclui emocionante narrativa do último encontro entre Wayne e Miles Davis”
“No CD, momentos memoráveis com Miles, Art Blakey, Weather Report e Joni Mitchell”
Como todo verdadeiro mestre, Wayne Shorter está longe de ser uma unanimidade. Os puristas chatonildos, anorgásmicos em sua ignorância, execram toda a produção de Wayne pós-Blue Note, ou melhor, do período Weather Report. A geração fusion, musicalmente esclarecida e sem antolhos, contempla ambas as fases, mas tem absoluta certeza de que o titã atingiu um novo patamar criativo após a associação com Miles Davis. Quem quiser defender sua própria argumentação, não deve perder por nada o livro “Footprints: The Life And Music of Wayne Shorter”, de Michelle Mercer (editado pela Tarcher/Penguin em dezembro de 2004), cuja “trilha sonora” está no homônimo CD-duplo lançado agora pela Sony BMG.
Para quem tem medo de coletâneas, vale reproduzir a opinião do próprio Wayne sobre o projeto do produtor Richard Seidel: “Esta compilação representa o DNA da minha vida e obra”. Outros dados animadores? O próprio Wayne supervisionou o projeto, que documenta o período 1960-2000 através de 22 faixas gravadas para cinco selos diferentes. O excelente texto de apresentação do CD é assinado pela biógrafa de Wayne, não se limitando a comentários puramente técnicos. Ao contrário, seduz rapidamente o leitor graças a uma abordagem fascinante de uma das mentes mais criativas e uma das personalidades mais instigantes da história do jazz. Faltam algumas coisas, como os primeiros discos para o selo VeeJay, os concertos com o VSOP, a primeira formação do Weather Report. Mas todas as facetas de Shorter estão representadas.
Dos momentos como “sideman”, temos desde o tenorista que despontou como diretor musical do grupo Jazz Messengers, do lendário baterista Art Blakey, com quem tocou por cinco anos, até o ápice de originalidade na colaboração com Miles Davis, quando foram geradas composições imediatamente adotadas como jazz standards (“Footprints”, “Nefertiti”). Em uma segunda etapa com Miles, representada pelo emblemático “Sanctuary” de “Bitches brew”, emergiu o mais inovador e rascante som de sax-soprano desde Coltrane, ainda que, na opinião de alguns, incluindo este escriba, sem a limpidez de Steve Lacy. Como líder, Wayne pode ser ouvido nos tempos da Blue Note (anos 60), da Columbia nos anos 70 (o antológico “Native dancer” ao lado de Milton Nascimento), 80 e 90, e com seu atual quarteto na Verve. Sem falar de monumentais álbuns com o Weather Report, além das aparições com Joni Mitchell, Gil Evans, J.J. Johnson e o conjunto Steely Dan.
Do bop ao jazz-rock
A música que abre esta viagem pelo universo sonoro de Shorter, “Lester left town”, foi gravada originalmente no disco “Africaine”, o primeiro como saxofonista de Blakey. À medida em que a tocavam nos shows, iam fazendo mudanças, acelerando o andamento, tendo chegado ao ponto ideal no tempo da gravação (março de 1960) para um outro LP, “The big beat”. É um petardo típico dos “hard-drinking, hard-bop years”, nas palavras de WS, transcendendo o perfil do homenageado Lester Young, com o trompete de Lee Morgan unido ao tenor na linha de frente. As três faixas seguintes datam de 1964. “Speak no evil” e “Infant eyes”, na excelsa companhia de Herbie Hancock, Ron Carter, Elvin Jones e Freddie Hubbard (apenas em “Speak...”) são amostras da prolífica fase como líder na Blue Note – seis discos em um período de dezoito meses. Na biografia, Wayne não despreza mas também não venera tais LPs, vistos como representantes de seu crescimento como “cosmic philosopher”.
“Time of the barracudas”, faixa do conceitual “The individualism of Gil Evans”, produzido por Creed Taylor para a Verve – costumeira aula de instrumentação do demencializante arranjador (Kenny Burrell, Gary Peacock e Elvin Jones atiçam o solo de WS no tenor) – antecede os históricos registros com Miles em “E.S.P.” (65, faixa-título da estréia com Davis, sinuosa melodia construída em intervalos de quartas descendentes), “Footprints” (66, um blues de 12 compassos, em tom menor, e andamento 6/4, tocado sobre uma repetitiva linha de baixo) e “Nefertiti” (67, composta por Wayne ao piano), com Ron Carter, Herbie Hancock e Tony Williams completando o melhor grupo da história do jazz. Em 69, uma amostra da virada que enlouqueceu os tradicionalistas, “Sanctuary”, das sessões originárias de “Bitches brew”, marco-zero do “fusion”.
Eletrizantes performances
A amizade com o tecladista austríaco Joe Zawinul levou à formação do Weather Report no início de 1971, poucos meses após Wayne deixar Miles para cuidar dos sérios problemas de saúde de Iska, sua filha com a portuguesa Ana Maria, controvertida figura falecida na mal-explicada explosão de um avião da TWA, em 1996. Lamentavelmente, em uma das poucas falhas graves desta compilação – um CD-triplo teria resolvido o problema – são omitidas faixas do memorável LP de estréia do WR que incluía excelentes temas de Wayne, em especial “Eurydice” e “Tears”, com vocal de Airto Moreira. Nada tampouco de “I sing the body electric” ou “Live in Tokyo”, entrando apenas o tema-título de “Mysterious traveller” (74, com Dom Um Romão barbarizando na percussão, música que tive o privilégio de regravar, 24 anos depois, para o CD “Rhythm traveller”) e “Lusitanos” (outro patrício, Alyrio Lima Cova, assume o set percussivo).
No final de 1974, Shorter surpreendeu a todos com o LP “Native dancer”, que trazia Milton Nascimento como convidado especial em quatro faixas, entre elas “Ponta de areia” (WS demoraria onze anos para gravar outro álbum como líder, “Atlantis”, em 1985). Em 1976, a entrada do revolucionário baixista Jaco Pastorius no WR duplicou a popularidade (e o cachê) da banda, coincidindo com a conversão de Shorter ao budismo. Suas intervenções, geralmente no sax soprano, tornavam-se cada vez mais minimalistas e introspectivas, levando os críticos recalcados a alegar uma suposta “decadência”. Ouvindo faixas do nível de “Palladium” (dedicada ao clube, localizado na Rua 52, em NY, onde Wayne tocara nos anos 50 na banda latina de Nat Phipps) e “Elegant people”, não restam dúvidas sobre a demência senil dos detratores.
Wayne jamais foi (nem quis ser) um “músico de estúdio”, raramente aparecendo em discos alheios. Abriu exceção apenas para vários álbuns da amiga Joni Mitchell, aqui captada no fenomenal arranjo de Pastorius para “The dry cleaner from des moines”, extraído da obra-prima “Mingus” (79). Outra honrosa exceção, a faixa-título de “Aja” (77), do sofisticado grupo pop Steely Dan, contou com crepitante improviso de tenor (na verdade, a junção de dois solos), de frases angulares entrecortadas pela bateria de Steve Gadd.
Com o fim do Weather Report, Wayne retomou a carreira individual em 1985, lançando álbuns auto-produzidos com excesso de teclados e programações eletrônicas robotizadas. “The three Marias”, “Mahogany bird” e “Joy rider” retratam esta fase, enquanto “Children of the night” (95), apesar da grandiloquente orquestração, mostrou o compositor retornando ao mesmo nível de excelência do instrumentista, sendo Grammyado como “best contemporary jazz performance”. No ano seguinte, 96, Shorter participou da homenagem que lhe fez o trombonista-mor do bebop, J.J. Johnson, em seu derradeiro projeto, “Heroes”, lançado somente em 1999. Pela faixa “In walked Wayne”, WR abiscoitou o Grammy de “best jazz instrumental performance by a soloist”.
Outro prêmio Grammy tinha vindo um pouco antes, em 97, na categoria “best instrumental composition”, pela faixa “Aung San Suu kyi”, do hermético CD “1 + 1” em duo com o velho amigo Hancock, que o tirou do luto pela morte de Ana Maria. “Descobri que a melhor maneira de honrar a memória dela era me tornando o homem mais feliz na face da terra”, declara Wayne no livro. Nesta empreitada, formou um novo quarteto (com Danilo Perez, John Patitucci e Brian Blade), voltando à estrada em 2001. Entretanto, a faixa “Masqualero”, do disco “Footprints live!”, nem chega perto do registro original. Mas nosso herói segue feliz, agora morando com a nova esposa, a brasileira Carolina, em um condomínio de luxo em Miami, depois de três décadas em Los Angeles. Aos 71 anos, Wayne Shorter permanece, assim como o amigo, ídolo e fã Miles Davis, antenado com o presente e atento ao futuro. O jazz agradece.
Legendas:
“Biografia caprichada inclui emocionante narrativa do último encontro entre Wayne e Miles Davis”
“No CD, momentos memoráveis com Miles, Art Blakey, Weather Report e Joni Mitchell”
Ola, Arnaldo!
ReplyDeleteO que acrescentar deste saxofonista, né! Fez e ainda faz uma música do infinito universo. Mestre a ser seguido.
Parabéns pela matéria. Abs
Marcos Paiva