O pop fisiocrático de Anna Ly
“Cantora e baixista, cultuada na cena jazzística de BH, lança seu primeiro CD pop”
Arnaldo DeSouteiro
“Cantora e baixista, cultuada na cena jazzística de BH, lança seu primeiro CD pop”
Arnaldo DeSouteiro
Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 2 de Setembro de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"
Depois de 10 anos atuando como baixista na cena jazzística de Belo Horizonte, conquistando um cult-following que lota todos os seus shows, Anna Ly adentra a cena pop como cantora e compositora através do CD “Panapaná”, cujo titulo significa “bando de borboletas em migração”. Aluna de Tomás Improta, Ian Guest e Yuri Popoff, fã de Jaco Pastorius, Rita Lee, Chet Baker, Pacifico Mascarenhas e João Gilberto, Anna assina letra & música da maioria das faixas do disco, que começou a ser gravado como produção independente em 2002 e agora chega ao mercado com distribuição do selo Sonhos & Sons, de Marcus Viana, convidado especial do álbum. Num momento em que o pop brasileiro sofre uma de suas piores crises de criatividade, Anna Ly aparece com uma proposta sonora fascinante pela combinação de leveza e substância.
Talento multifacetado
As últimas semanas têm sido especialmente agitadas para Anna Ly. Além dos shows no Café Três Corações (badalado bar da região da Savassi) e no Aqui Ó (casa noturna de Toninho Horta), a artista começou a sentir o gostinho da repercussão do seu trabalho a nível nacional (referendado por Tárik de Souza) e internacional. As faixas “Pra te interpretar” e “Quem Somos Nós”, além do remix para “Material world”, entraram nas programações de importantes rádios de Londres (como a BBC e a Jazz FM), Roma, Munich e Amsterdam. Resultado: o CD já começou a ser procurado em vários países da Europa, disponibilizado através de lojas virtuais como a alemã www.amazon.de e a holandesa www.allstars.nel, paraísos dos colecionadores mais antenados.
Os brasileiros não precisam caçar “Panapaná” tão longe. Através do site oficial de Marcus Viana, www.sonhosesonhos.com.br, o CD pode ser adquirido por módicos R$17,00 mais custos de postagem. “Sei da dificuldade da distribuidora em colocar o disco nas lojas fora de Minas Gerais, principalmente para um artista que não costuma tocar no Rio de Janeiro ou em São Paulo com muita freqüência”, comenta Anna Ly, ciente do bloqueio que irá enfrentar. Afinal, nomes como seus amigos do Skank (companheiros de Anna em incontáveis jams antes da fama) e o gaúcho Yamandu Costa são exemplos notórios de nomes que somente se consagraram após instalarem suas bases no Rio. E em se tratando de cantoras mineiras, o último caso de que se tem notícia foi a da aparição efêmera de Júnia Lambert, cujo único disco (“Ar de rock”) na antiga Polygram gerou apenas um sucesso, “Limousine grana suja”, incluido na novela “Cara & Coroa”, em 95.
Apesar de estar iniciando agora sua carreira discográfica, Anna Ly não pode ser considerada uma novata. Rotulá-la apenas como baixista e cantora também é impreciso. Na verdade, trata-se de uma multi-instrumentista com sólida base musical, a começar pelo estudo de piano clássico na infância. Na adolescência, encantou-se com o teatro, estudando por três anos com Amir Haddad e atuando como atriz enquanto lapidava, no Rio, sua técnica como baixista (com Yuri Popoff) e tecladista (com Tomás Improta, naquela época o braço direito de Caetano Veloso na Outra Banda da Terra). Vivendo por algum tempo na ponte-aérea RJ-BH-SP, tocou com vários cantores e bandas – Bauxita, Samuel Rosa, Jota Quest, Jorge Continentino, Junia Lambert –, apresentando-se no Circo Voador, no Programa Livre (Serginho Groissman), e no Festival de Blues After Sport. Após estudar canto e guitarra, adotou em 93 o nome artístico Ana Luiza Lee, aprontando um show cover de Rita Lee que alcançou tanto sucesso a ponto de incomodar a homenageada. Formou duas bandas integradas apenas por mulheres: Hot Stuff e Máxima Crueldade, cujos nomes dizem tudo.
Turbilhão sonoro
Optando pela carreira-solo, disparou sucessivos shows – “Mademoiselle chant le blues” (96), “Tic-Tic for you” (98), “In concert” (99) e “Explicatrix” (2003) – nos principais teatros e casas noturnas de Belo Horizonte, além de performances no FIT (Festival Internacional de Teatro) e no Encontro da Canção Latino-Americana e Caribenha, mantendo sempre o clima de performance teatral como uma característica marcante em suas apresentações. Participou de inúmeros festivais, emplacando a sua composição “Conversa pra boi dormir” entre as doze finalistas do “FestBelô 2000”, mesmo ano em que participou do CD “BH-Nossa Música”. Fez cursos de aperfeiçoamento em harmonia, arranjo e música modal com o maestro Ian Guest (um dos arranjadores do lendário “Quem é quem”, de João Donato), começando a trabalhar como educadora musical no Centro de Musicalização Infantil da UFMG e na Opus Escola de Música.
Na área jazzística, Anna Ly tem vivido emoções tremendas com seu show de standards. A mais recente aconteceu semana passada, na casa noturna “Aqui Ó”, de Toninho Horta. “Percebi quando o Toninho chegou, mas achei que ele havia ido embora. Quando acabei de tocar, vi que ele estava lá no fundo, ouvindo o nosso som. Já foi uma emoção. De repente o Toninho subiu no palco com a guitarra e, depois do tempo necessário para o entrosamento, começou a rolar a mágica. Ele faz quinhentas harmonizações por segundo, progressões, improvisos e eu sei que estou a quinhentos anos-luz atrás dele nesse sentido, mas sentia que estava lhe dando um chão, que a gente dialogava, que o rítmo tava swingado, e eu sentindo um prazer enorme porque ele realmente é um gênio. Tocamos várias músicas dele, rolou “Summertime”, “’Round midnight”, “Amor em paz”, cada tema durando uns quinze minutos. Ou seja, ele tocou mais de uma hora comigo se divertindo bem. Depois foi pra bateria e fizemos “Giant steps” com o Marquinho na guitarra. Acho que foi a maior emoção musical que já tive na vida, ainda mais que no final ele me abraçou carinhosamente e me chamou de ‘rainha do groove’. Aí foi demais”, exulta.
Caleidoscópio multifacetado
“As 13 faixas guardam achados poéticos, comentários entre o prosaico e o inusitado, observações cotidianas vistas por um caleidoscópio capaz de imagens ora contundentes, ora revestidas de leveza quase adolescente”, resumiu, com precisão, o crítico Kiko Ferreira ao comentar “Panapaná” no jornal “Estado de Minas”. Mas o turbilhão sonoro do disco engloba muitos elementos. Tanto que, entre os melhores momentos, estão a bossa pós-caramanchão “Pra te interpretar”, inspirada pelo ídolo João Gilberto, e a balada “Quem somos nós”, valorizada pelo violino mágico de Marcus Viana. Líder do mítico grupo progressivo Sagrado Coração da Terra, autor de trilhas memoráveis para cinema e TV, incluindo a do recente filme “Olga”, mais recente colaboração com o diretor Jayme Monjardim, sua participação serve também como valioso endosso ao talento de Anna Ly.
O violão de Laudares, arranjador e produtor musical do CD, baliza a sutil temperança de “Pra te interpretar” (“"Eu quero descobrir/A fonte, a transparência/Ciência estrelar/Ter a chave, o tempo/O espaço, a voz do vento/A linguagem clara visionaria/Pra te interpretar"), ponto alto da astrólatra letrista, com solo do saxofonista Marcelo Rocha a la Stan Getz, jazzman reverenciado pela arguciosa artista. Outro momento de idílio sonoro, “Quem somos nós”, hit televisivo em potencial, com Ly e Viana flanando sobre a plácida cama de teclados (com belos timbres) armada por Jelber Oliveira, referenda algumas das máximas joãogilbertianas através do minimalismo poético e do culto a um dos mais importantes elementos musicais, o silêncio (“Quem somos nós/Assim a sós/Silêncio/A música vai nos dizer”), que só os sábios sabem honrar.
“Caleidoscópio multifacetado furta-cor”, verso emblemático da faixa de abertura “Material world”, sintetiza bem o espírito do disco, caracterizado por um clima pop juvenil, de desconcertante frescor. Esta leveza que os americanos chamam de “childlike” (acriançada, na tradução literal), mas que não é infantilizada nem rala, torna a audição do trabalho subliminarmente prazerosa. As interpretações de Anna Ly, livres de afetações, situam-se no limiar do despojamento, sem descambar para a displiscência. Fugaz e frugal na medida exata, sua música soa como um bálsamo dentro da atual estética, agressiva e grosseira, do pop-rock nacional, cada vez mais indigente, salvo raríssimas exceções como Lulu Santos, Lord K, Marina e Rita Lee, esta última ainda uma forte influência, vide a deliciosa “Lunares” (Nostradamus não sonhou/Com a noite que ainda nem começou”), parceria de Ly com Affonsinho, outro mineiro a despontar recentemente com os discos da série “Esquina de Minas”.
Os versos de Anna Ly mais interrogam do que exclamam. “Sinto prazer na incerteza/Me deleito em quebrar paradigmas/Dogmas, estigmas”, avisa em “Olhos de ver”, antes de deixar o rock sobrepujar o pop na pegada rascante de “Estranho não é esquisito”, única faixa não assinada pela líder, mas por Magno Mello, diretor artístico do álbum e um dos pilares do projeto, junto com a publicitária Ethel Cacowicz, que assina a produção executiva. Vale destacar ainda a sensualidade de “O vento, a vela e o mar”, os efeitos vocais de Sergio Pererê (evocando Naná Vasconcellos) em “Oração”, e a objetividade poética de “Venha” (Se você vem/Mate a pulga atrás da orelha/Não deixe apagar a centelha), cravada sobre o pulso seguro de Áureo Lopes (baixo) e André Campagnani (bateria). Tudo embalado pela linda capa do artista gráfico Estevão Machado, com fotos de Paulo Laborne e Sergio Amzalack.
A vinheta “Gato de botas”, com a própria Anna no violão, fecha o disco, de certa maneira antecipando o próximo projeto da artista, “Desenrolando a língua”, CD infantil acoplado a um livro já em fase de finalização, tendo como subtítulo “As origens e a história da língua portuguesa falada no Brasil”. Nas noites belorizontinas, entre as gigs jazzísticas e os shows para divulgação do pop fisiocrático de “Panapaná”, ela encontra tempo ainda para exercitar sua faceta bossanovista na casa noturna “Agência Status”, num duo com o violonista Márcio Correa que fascinou João Gilberto. Para qual direção a carreira de Anna Ly irá pender? Bem, talvez a sideromancia possa responder.
Legenda:
Anna Ly mostra, no CD “Panapaná”, que o pop nacional também pode ser sutil e criativo
Depois de 10 anos atuando como baixista na cena jazzística de Belo Horizonte, conquistando um cult-following que lota todos os seus shows, Anna Ly adentra a cena pop como cantora e compositora através do CD “Panapaná”, cujo titulo significa “bando de borboletas em migração”. Aluna de Tomás Improta, Ian Guest e Yuri Popoff, fã de Jaco Pastorius, Rita Lee, Chet Baker, Pacifico Mascarenhas e João Gilberto, Anna assina letra & música da maioria das faixas do disco, que começou a ser gravado como produção independente em 2002 e agora chega ao mercado com distribuição do selo Sonhos & Sons, de Marcus Viana, convidado especial do álbum. Num momento em que o pop brasileiro sofre uma de suas piores crises de criatividade, Anna Ly aparece com uma proposta sonora fascinante pela combinação de leveza e substância.
Talento multifacetado
As últimas semanas têm sido especialmente agitadas para Anna Ly. Além dos shows no Café Três Corações (badalado bar da região da Savassi) e no Aqui Ó (casa noturna de Toninho Horta), a artista começou a sentir o gostinho da repercussão do seu trabalho a nível nacional (referendado por Tárik de Souza) e internacional. As faixas “Pra te interpretar” e “Quem Somos Nós”, além do remix para “Material world”, entraram nas programações de importantes rádios de Londres (como a BBC e a Jazz FM), Roma, Munich e Amsterdam. Resultado: o CD já começou a ser procurado em vários países da Europa, disponibilizado através de lojas virtuais como a alemã www.amazon.de e a holandesa www.allstars.nel, paraísos dos colecionadores mais antenados.
Os brasileiros não precisam caçar “Panapaná” tão longe. Através do site oficial de Marcus Viana, www.sonhosesonhos.com.br, o CD pode ser adquirido por módicos R$17,00 mais custos de postagem. “Sei da dificuldade da distribuidora em colocar o disco nas lojas fora de Minas Gerais, principalmente para um artista que não costuma tocar no Rio de Janeiro ou em São Paulo com muita freqüência”, comenta Anna Ly, ciente do bloqueio que irá enfrentar. Afinal, nomes como seus amigos do Skank (companheiros de Anna em incontáveis jams antes da fama) e o gaúcho Yamandu Costa são exemplos notórios de nomes que somente se consagraram após instalarem suas bases no Rio. E em se tratando de cantoras mineiras, o último caso de que se tem notícia foi a da aparição efêmera de Júnia Lambert, cujo único disco (“Ar de rock”) na antiga Polygram gerou apenas um sucesso, “Limousine grana suja”, incluido na novela “Cara & Coroa”, em 95.
Apesar de estar iniciando agora sua carreira discográfica, Anna Ly não pode ser considerada uma novata. Rotulá-la apenas como baixista e cantora também é impreciso. Na verdade, trata-se de uma multi-instrumentista com sólida base musical, a começar pelo estudo de piano clássico na infância. Na adolescência, encantou-se com o teatro, estudando por três anos com Amir Haddad e atuando como atriz enquanto lapidava, no Rio, sua técnica como baixista (com Yuri Popoff) e tecladista (com Tomás Improta, naquela época o braço direito de Caetano Veloso na Outra Banda da Terra). Vivendo por algum tempo na ponte-aérea RJ-BH-SP, tocou com vários cantores e bandas – Bauxita, Samuel Rosa, Jota Quest, Jorge Continentino, Junia Lambert –, apresentando-se no Circo Voador, no Programa Livre (Serginho Groissman), e no Festival de Blues After Sport. Após estudar canto e guitarra, adotou em 93 o nome artístico Ana Luiza Lee, aprontando um show cover de Rita Lee que alcançou tanto sucesso a ponto de incomodar a homenageada. Formou duas bandas integradas apenas por mulheres: Hot Stuff e Máxima Crueldade, cujos nomes dizem tudo.
Turbilhão sonoro
Optando pela carreira-solo, disparou sucessivos shows – “Mademoiselle chant le blues” (96), “Tic-Tic for you” (98), “In concert” (99) e “Explicatrix” (2003) – nos principais teatros e casas noturnas de Belo Horizonte, além de performances no FIT (Festival Internacional de Teatro) e no Encontro da Canção Latino-Americana e Caribenha, mantendo sempre o clima de performance teatral como uma característica marcante em suas apresentações. Participou de inúmeros festivais, emplacando a sua composição “Conversa pra boi dormir” entre as doze finalistas do “FestBelô 2000”, mesmo ano em que participou do CD “BH-Nossa Música”. Fez cursos de aperfeiçoamento em harmonia, arranjo e música modal com o maestro Ian Guest (um dos arranjadores do lendário “Quem é quem”, de João Donato), começando a trabalhar como educadora musical no Centro de Musicalização Infantil da UFMG e na Opus Escola de Música.
Na área jazzística, Anna Ly tem vivido emoções tremendas com seu show de standards. A mais recente aconteceu semana passada, na casa noturna “Aqui Ó”, de Toninho Horta. “Percebi quando o Toninho chegou, mas achei que ele havia ido embora. Quando acabei de tocar, vi que ele estava lá no fundo, ouvindo o nosso som. Já foi uma emoção. De repente o Toninho subiu no palco com a guitarra e, depois do tempo necessário para o entrosamento, começou a rolar a mágica. Ele faz quinhentas harmonizações por segundo, progressões, improvisos e eu sei que estou a quinhentos anos-luz atrás dele nesse sentido, mas sentia que estava lhe dando um chão, que a gente dialogava, que o rítmo tava swingado, e eu sentindo um prazer enorme porque ele realmente é um gênio. Tocamos várias músicas dele, rolou “Summertime”, “’Round midnight”, “Amor em paz”, cada tema durando uns quinze minutos. Ou seja, ele tocou mais de uma hora comigo se divertindo bem. Depois foi pra bateria e fizemos “Giant steps” com o Marquinho na guitarra. Acho que foi a maior emoção musical que já tive na vida, ainda mais que no final ele me abraçou carinhosamente e me chamou de ‘rainha do groove’. Aí foi demais”, exulta.
Caleidoscópio multifacetado
“As 13 faixas guardam achados poéticos, comentários entre o prosaico e o inusitado, observações cotidianas vistas por um caleidoscópio capaz de imagens ora contundentes, ora revestidas de leveza quase adolescente”, resumiu, com precisão, o crítico Kiko Ferreira ao comentar “Panapaná” no jornal “Estado de Minas”. Mas o turbilhão sonoro do disco engloba muitos elementos. Tanto que, entre os melhores momentos, estão a bossa pós-caramanchão “Pra te interpretar”, inspirada pelo ídolo João Gilberto, e a balada “Quem somos nós”, valorizada pelo violino mágico de Marcus Viana. Líder do mítico grupo progressivo Sagrado Coração da Terra, autor de trilhas memoráveis para cinema e TV, incluindo a do recente filme “Olga”, mais recente colaboração com o diretor Jayme Monjardim, sua participação serve também como valioso endosso ao talento de Anna Ly.
O violão de Laudares, arranjador e produtor musical do CD, baliza a sutil temperança de “Pra te interpretar” (“"Eu quero descobrir/A fonte, a transparência/Ciência estrelar/Ter a chave, o tempo/O espaço, a voz do vento/A linguagem clara visionaria/Pra te interpretar"), ponto alto da astrólatra letrista, com solo do saxofonista Marcelo Rocha a la Stan Getz, jazzman reverenciado pela arguciosa artista. Outro momento de idílio sonoro, “Quem somos nós”, hit televisivo em potencial, com Ly e Viana flanando sobre a plácida cama de teclados (com belos timbres) armada por Jelber Oliveira, referenda algumas das máximas joãogilbertianas através do minimalismo poético e do culto a um dos mais importantes elementos musicais, o silêncio (“Quem somos nós/Assim a sós/Silêncio/A música vai nos dizer”), que só os sábios sabem honrar.
“Caleidoscópio multifacetado furta-cor”, verso emblemático da faixa de abertura “Material world”, sintetiza bem o espírito do disco, caracterizado por um clima pop juvenil, de desconcertante frescor. Esta leveza que os americanos chamam de “childlike” (acriançada, na tradução literal), mas que não é infantilizada nem rala, torna a audição do trabalho subliminarmente prazerosa. As interpretações de Anna Ly, livres de afetações, situam-se no limiar do despojamento, sem descambar para a displiscência. Fugaz e frugal na medida exata, sua música soa como um bálsamo dentro da atual estética, agressiva e grosseira, do pop-rock nacional, cada vez mais indigente, salvo raríssimas exceções como Lulu Santos, Lord K, Marina e Rita Lee, esta última ainda uma forte influência, vide a deliciosa “Lunares” (Nostradamus não sonhou/Com a noite que ainda nem começou”), parceria de Ly com Affonsinho, outro mineiro a despontar recentemente com os discos da série “Esquina de Minas”.
Os versos de Anna Ly mais interrogam do que exclamam. “Sinto prazer na incerteza/Me deleito em quebrar paradigmas/Dogmas, estigmas”, avisa em “Olhos de ver”, antes de deixar o rock sobrepujar o pop na pegada rascante de “Estranho não é esquisito”, única faixa não assinada pela líder, mas por Magno Mello, diretor artístico do álbum e um dos pilares do projeto, junto com a publicitária Ethel Cacowicz, que assina a produção executiva. Vale destacar ainda a sensualidade de “O vento, a vela e o mar”, os efeitos vocais de Sergio Pererê (evocando Naná Vasconcellos) em “Oração”, e a objetividade poética de “Venha” (Se você vem/Mate a pulga atrás da orelha/Não deixe apagar a centelha), cravada sobre o pulso seguro de Áureo Lopes (baixo) e André Campagnani (bateria). Tudo embalado pela linda capa do artista gráfico Estevão Machado, com fotos de Paulo Laborne e Sergio Amzalack.
A vinheta “Gato de botas”, com a própria Anna no violão, fecha o disco, de certa maneira antecipando o próximo projeto da artista, “Desenrolando a língua”, CD infantil acoplado a um livro já em fase de finalização, tendo como subtítulo “As origens e a história da língua portuguesa falada no Brasil”. Nas noites belorizontinas, entre as gigs jazzísticas e os shows para divulgação do pop fisiocrático de “Panapaná”, ela encontra tempo ainda para exercitar sua faceta bossanovista na casa noturna “Agência Status”, num duo com o violonista Márcio Correa que fascinou João Gilberto. Para qual direção a carreira de Anna Ly irá pender? Bem, talvez a sideromancia possa responder.
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Anna Ly mostra, no CD “Panapaná”, que o pop nacional também pode ser sutil e criativo
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