Monday, May 28, 2007

Miles e Pastorius - DVDs mostram diferentes faces do "fusion"



DVDs mostram diferentes faces do “fusion”
“Shows antológicos de Miles Davis e Jaco Pastorius chegam às lojas”
Arnaldo DeSouteiro


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 2 de Junho de 2005 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Enquanto a crise na venda de CDs se aprofunda, e as gravadoras ficam cada vez mais retraídas no investimento em novos produtos, com jazzmen de renome fundando seus próprios selos (Dave Holland, Jack DeJohnette) e optando pela venda via internet (Maria Schneider, Jim Hall, Jane Ira Bloom), os lançamentos em DVDs proliferam. Uma recente safra destaca memoráveis concertos que mostram diferentes faces do amaldiçoado jazz-fusion, grande sensação nos anos 70 e alvo predileto dos ataques dos puristas após o início da onda retrô deflagrada por Wynton Marsalis no início dos anos 80.

Nas palestras e entrevistas que concedo no Brasil, e também mundo afora, sempre me perguntam o motivo deste ódio ao fusion por parte dos tradicionalistas ensebados. A resposta já está na ponta da língua e é a mesma desde que ministrei “clinics” e participei (ao lado de Lee Berk, David Baker, Sigi Busch, Darius Brubeck e outros notáveis) de “panel sessions” na 19ª Conferência Anual da IAJE, em janeiro de 1992, em Miami, como primeiro membro brasileiro da International Association of Jazz Educators (hoje renomeada International Association for Jazz Education).

Em resumo, trata-se de uma mistura de pobreza (tanto monetária quanto de espírito) com ignorância. Afinal, todo falso expert precisa criar polêmica para propagar sua suposta “sabedoria”, adotando sempre uma postura arrogante com linguagem empolada e gestos largos, arrotando baboseiras que os incautos consideram conhecimento enciclopédico. E atacar o “fusion” ou qualquer desenvolvimento no jazz é uma das estratégias preferidas para chamar a atenção e conquistar a simpatia dos neófitos. Além disso, manter-se atualizado custa caro, e nenhum desses personagens burlescos tem condições de assinar revistas estrangeiras ou comprar discos importados. Então, se auto-proclamam defensores do “puro jazz” ou “jazz verdadeiro”. Alguns são capazes até de inventar que escreveram livros, desenvolvendo uma megalomania galopante associada à mentira compulsiva.

Tais picaretas improdutivos, geralmente portando velhas sacolas com LPs (para provar que “nenhum CD supera o vinil”) gabam-se de saber a data do nascimento da mãe de Louis Armstrong ou o número exato de clientes de Billie Holiday em seus dias de “call girl”. Informações inúteis que, obviamente, ninguém pode comprovar. Mas que impressionam os ainda mais ignorantes. Em geral revoltados porque desempregados, às vezes dependendo de esmolas mensais de fraudadores do sistema financeiro, essas caricaturas do gênero humano perambulam nas bocas-livres, bajulando promotores de shows e festivais, prontos a se venderem em troca de um ingresso, um chope, um charuto e uma empadinha, não necessariamente nessa ordem. Em casos de extremo desespero, aprisionados em sua própria mediocridade, transformam-se em hackers da terceira idade, forjando debates na internet com “personagens” fictícios, por eles mesmos criados em doentio delírio.

Diabruras de Miles

Miles Davis, um dos maiores gênios da história do jazz, é alvo constante de violentas agressões, justamente por ter sido um permanente revolucionário. Não bastasse o indispensável “Electric Miles: a different kind of blue” (ST2), documentário sobre a mitológica performance no Isle of Wight Festival em 1970, outro excelente DVD chegou recentemente ao mercado brasileiro, via Indie Records. Documentando a penúltima fase do “Picasso do jazz”, antes da experimentação com rap e hip-hop no derradeiro CD “Doo-bop”, “Live in Munich”, filmado no Philharmonic Concert Hall em 1998, surge como versão ampliada e remasterizada de um DVD lançado exclusivamente no Japão em 2000, pela Toshiba, com apenas oito músicas. Esta segunda edição abriga quinze temas, além de contar com vários “extras”: comentários do tecladista Adam Holzman sobre o concerto, uma razoável biografia, e linda “galeria” das pinturas de Miles – por sinal, uma delas aparece na capa do DVD. Sem falar da indescritível entrevista concedida à um apavorado repórter da TV alemã, acondicionada num DVD adicional.

O repertório é basicamente o mesmo da apresentação que tive o privilégio de assistir um ano antes, no Festival de Montreux de 1987, com Rick Margitza no lugar de Kenny Garrett. “Perfect Way”, recriação de um hit do grupo Scritti Politti, abre o show em clima de pancadão, com a vigorosa base funk mantida em “The senate”, que destaca o guitarrista Joe “Foley” McCreary. “Me & U” serve como showcase para o baixista Ben Rietveld, citando até “Begin the beguine” em improviso demolidor. O fantástico arranjo para “Human nature”, gravado por Michael Jackson em “Thriller”, traz solos de Miles e, depois da engenhosa modulação de si bemol para si menor, Garrett no sax-alto. Na seqüência, Foley aplica um riff de guitarra a la Prince em “Wrinkle”, de Erin Davis, sobrinho do líder.

Marilyn Mazur, fenomenal percussionista radicada na Dinamarca desde 1961, e única mulher a fazer parte dos grupos de Miles, rouba a cena em “Tutu”. Além de destruir nas congas, sai dançando durante seu solo afrodisíaco, usando derbaque e guizos amarrados aos pés, bailando sedutora e percussivamente para deleite da platéia e do próprio Miles, embevecido. Marilyn segue arrasando na delicada releitura de “Time after time”, de Cyndi Lauper, sacando de sinos para pontuar o fraseado de Davis. Em “Splatch”, arma crepitante combinação de congas, timbales e bongôs, estimulando os solos dos tecladistas Holzman e Bobby Irving, cabendo à Garrett fornecer riffs no sax-barítono. Puxa o “Prelude” com som de kalimba e, enquanto Miles faz a base no sintetizador, encanta ao fazer solo usando baqueta nos bongôs. Chamada à frente do palco pelo chefe, a bela recebe merecida ovação.

Portando sua guitarra azul, Foley, todo de branco e com crucifixo no pescoço, exorciza a maldição dos tradicionalistas em “Heavy metal”. Guitarra e flauta somam-se na exposição de “Don’t stop me now”, do grupo Toto, que traz diálogo entre Miles no trompete com surdina (chamado de “trompete mudo” num dos muitos erros de tradução das legendas) e Foley. Solos de Mazur e do batera Ricky Wellman incendeiam “Carnival time”, Garrett desce à platéia durante seu improviso em “Tomaas”, e Foley veste seu paletó verde para o momento solene de “New blues”. No encerramento, Miles sai de cena após o solo em “Portia”, deixando a banda completar a música, finalizada por Garrett de forma pungente.

Transe orquestral

Emoção também não falta ao desempenho demencializante da Jaco Pastorius Big Band no DVD “Live in Japan”, captado em 1982 no Aurex Jazz Festival. Caso raro de músico que revolucionou a linguagem de seu instrumento, estabelecendo novos padrões de execução e sonoridade, influenciando nove entre dez baixistas surgidos após sua aparição no Weather Report, Pastorius estava no ápice da criatividade quando formou sua própria banda. Arranjador autodidata, fortemente influenciado por Gil Evans, liderava uma formação nada convencional de vinte feras, abrindo o set com uma orquestração ultramoderna para “Invitation” (tema de Bronislau Kaper para a trilha do filme estrelado por Dorothy McGuire e Van Johnson), com solo rascante do trompetista Randy Brecker. Na verdade, o som dessa bandaça transcende o rótulo fusion, reciclando desde um hino do bebop (“Donna Lee”, de Charlie Parker) até “Sophisticated lady”, de Duke Ellington, passando pela funkyada “The chicken” (clássico do rhythm & blues escrito por Pee Wee Ellis para James Brown), destacando Bob Mintzer no tenor.

Durante os oitenta minutos ocorrem aulas práticas de instrumentação, incluindo passagens em uníssono de baixo elétrico fretless com steel drums (a cargo de Othello Molineaux) e tuba (!) em “Donna Lee”. Sim, isso mesmo, David Bargeron (presença marcante na banda de Gil Evans) executando, na tuba, a linha sinuosíssima de “Donna Lee”, com direito a introdução a cappella e improviso a cem por hora. Momento de especial emoção ocorre quando Jaco chama ao palco seu convidado especial Toots Thielemans. Iniciam “Sophisticated lady” em duo, cada um entortando mais do que o outro, Pastorius cravando harmônicos fatais ao “acompanhar” as evoluções do insuperável gaitista. Chegam ao auge da integração telepática na jazz-waltz “Three views of a secret”, obra-prima de Jaco como compositor, escrita originalmente para o álbum “Word of mouth” em 81. A troca de olhares entre os dois mestres, em flagrante de admiração mútua, terminando com um beijo, é comovente.

Em outra música daquele mesmo LP, a resplandecente “Liberty city”, a big-band parece levantar vôo, com metais faiscantes rasgando o groove mortal armado por Pastorius e o baterista Peter Erskine, seu colega nos tempos do Weather Report. “Okonkole y trompa”, como diz o título, focaliza a interação do percussionista Don Alias (congas e evocações vocais aos orixás) com o trompista Peter Gordon. Na seção de sopros, vale destacar ainda as presenças dos multi-instrumentistas Paul McCandless (oboé e corne inglês), Mario Cruz (flauta e clarinete) e Alex Foster (flautim e clarinete), todos eventualmente atacando também em diferentes tipos de saxofones. Peter Graves, especialista em trombone-baixo, excerce o papel de “regente assistente”, embora a maior parte da regência seja excercida mesmo por Pastorius, através de saltos e cabeçadas.

Fechando o concerto, o medley unindo “Reza” (de Jaco, nenhuma ligação com o tema homônima de Edu Lobo) e “Giant steps”, magnum opus de John Coltrane, novamente desafia as leis da gravidade. Jon Faddis e Ron Tooley, famosos por alcançarem agudos estratosféricos, comandam a seção de trompetes, somada aos trombones de Bill Reichenbach (em um dos raras ocasiões em que aceitou largar sua lucrativa rotina nos estúdios de Los Angeles para ir ao Japão com Jaco) e Wayne Andre, falecido no ano passado, saudosa figura da cena jazzística novaiorquina e que chegou a tocar no Brasil com Marcio Montarroyos, nos anos 80, quando o Mistura Fina ainda ficava na Garcia D’Ávila, em Ipanema. Enquanto os pseudo-críticos recalcados praguejam, os produtivos produtores alcançam o nirvana.
Legendas:
“Live in Munich”: versão ampliada e remasterizada do concerto de Miles em 1998
“Jaco Pastorius, reinventor do baixo elétrico, lidera uma big-band no Japão”

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