Tuesday, May 22, 2007

Marc Copland, o poeta do piano jazzístico


Marc Copland, o poeta do piano jazzístico
Arnaldo DeSouteiro

Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 8 de Agosto de 2003 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

O mundo do jazz conta hoje com várias gerações de pianistas em intensa atividade: de lendas-vivas reverenciadas aquém de sua importância, como Oscar Peterson e Dave Brubeck, aos modernosos sobrevalorizados Jason Moran e Brad Meldhau, passando pelos craques merecidamente consagrados na virada dos anos 60/70 que estão sempre se reinventando – Herbie Hancock, Chick Corea, McCoy Tyner e Keith Jarrett. Mas poucos tem alcançado, em discos recentes, o altíssimo nível de qualidade obtido pelo genial Marc Copland. Quatro novos CDs mostram o poeta-maior do piano jazzístico exercitando-se em diferentes contextos com a mesma criatividade. Da meditação-solo em “Poetic motion” aos diálogos de alta combustão com o saxofonista Dave Liebman em “Lunar”, além de (e)levar o formato de trio a um novo patamar luminoso; seja com o baixo de Drew Gress e a bateria de Jochen Rueckert (“Haunted heart & other ballads”) ou na inusitada combinação de piano, trompete (Kenny Wheeler) e guitarra (John Abercrombie) ao longo do translúcido “That’s for sure”.

Durante algum tempo, Copland pertenceu ao rol dos chamados “músicos dos músicos” – aqueles artistas que, apesar de venerados pelos colegas, nunca recebem a devida atenção por parte da crítica e muito menos desfrutam de popularidade. Agora, aos 55 anos, continua adorado pelo meio artístico, mas já conquistou sólido prestígio internacional e merece, sem favor algum, ser considerado um dos cinco melhores pianistas no cenário jazzístico contemporâneo. Sua trajetória não foi das mais fáceis, sua vida deu mais de mil voltas. Dos 14 aos 26 anos, com seu nome de batismo, Marc Cohen, tocou somente saxofone, realizando um trabalho pioneiro em matéria de sax-alto elétrico (!) como membro do quarteto do batera Chico Hamilton. Seu primeiro LP, “Friends”, recebeu a cotação máxima de cinco estrelas na Down Beat. Elogio insuficiente para massagear o ego do irrequieto mancebo, que não andava lá muito satisfeito com sua opção pelo sax.

O fascínio pelo mundo da harmonia atraía-o para a família dos teclados, e em 1974 ele decidiu adotar o piano como instrumento definitivo. Transição tão importante quanto a mudança de Filadélfia, onde nasceu em 27 de maio de 1948, para New York, enturmando-se com os irmãos Randy & Michael Brecker. Súbito, rumou para Washington, dando-se por satisfeito em ganhar a vida, entre 75 e 83, como “house pianist” dos clubes Blues Alley e One Step Down. Sem ver o menor problema em trabalhar como mecânico de automóveis para completar o orçamento doméstico. E muito menos em pilotar teclados eletrônicos em álbuns de disco-music, como “Happy Hour”, de Eumir Deodato. Ao regressar a NY, em 84, chegou com ânimo renovado. E não parou de ascender gradualmente. Desde então, tocou e gravou ao lado de John Scofield, Joe Lovano, Larry Coryell, Astrud Gilberto, Emily Remler, Herbie Mann, Wallace Roney, integrou a banda de Bob Belden e tornou-se diretor musical de James Moody.

A calmaria durou até o lançamento de seu disco de estréia-solo como pianista, “My foolish heart”, bancado pelo selo japonês Jazz City em 88. Logo depois precisou adotar um novo nome artístico. Tudo porque um cantorzinho chamado Marc Cohn, hoje esquecido, estourou no mercado pop, gerando grande confusão. “Empresários me ligavam cancelando shows, pensando que eu havia mudado de estilo, enquanto outros queriam me contratar achando que eu era o pop-star”, explica Marc, que não viu outra saída senão mudar o sobrenome de Cohen para Copland. Felizmente, apesar de arriscada, a mudança não atrapalhou o desenvolvimento de sua carreira. Talvez até tenha dado sorte, pois aumentaram as excursões pela Europa, um segundo disco (“All blues”) foi encomendado pelo mercado japonês e, em 92, ele conseguiu lançar seu primeiro CD nos EUA, “At night”. Seguiram-se vários outros trabalhos impecáveis como “Two way street”, “Never at all” (duo com Stan Szulmann), e três álbuns para o selo Savoy Jazz: “Stompin’ with Savoy”, “Second look” e “Softly”.

Harmonizador genial

Analisar detalhadamente o estilo de Copland daria uma tese, mas tentemos em apenas um parágrafo. Sempre buscando e encontrando caminhos harmônicos altamente sofisticados que atestam sua genialidade, viaja por um espaço próprio que reprocessa inspirações (principalmente de Bill Evans) de uma maneira inteiramente original, sem sequer passar perto do que se poderia chamar de “influência”. Lírico, mas jamais resvalando para a melosidade, trafega pelas vias de um romantismo onírico-aventuroso pontuado por sutilezas, acoplando constante expansão, fascínio pelo desafio e desejo de superação sem soar pretensioso. Meditativo e reflexivo, nunca tedioso ou sorumbático. Arrojado e complexo, nunca hermético, sem descanbar para histrionismos ou firulas gratuitas nem perder-se na aridez “free” de um Cecil Taylor, por exemplo.

Fruto de uma única sessão para o selo suíço HatOlogy, “Lunar” (57m48s), produzido por Art Lange, capta Marc dividindo a liderança com Dave Liebman. Passeiam por belos temas de Liebman (“Brother Ernesto”, “Standoff”), Copland (“Pirouette”, “All that’s left” e a faixa-título esteticamente complementar à famosa “Solar” de Miles Davis) e Jimmy Giuffre (o free-spiritual “Cry want”), tendo a participação de Mike McGuirk (baixo) e Tony Martucci (bateria). Liebman, “formado” na fase fusionista de Miles, mostra seu completo domínio do sax-soprano, usado na maioria das faixas mas trocado pelo tenor em dois irretocáveis duos com Marc. Na pungente “Naima”, de John Coltrane, Dave consegue uma leitura completamente diversa da gravação com Richie Beirach no DVD “Tribute to Coltrane”. No standard “You and the night and the music”, o piano de Copland incorpora instrumentos imaginários, sendo possível ouvir, na mão esquerda, a “levada” do baixo e, na direita, a condução nos pratos.

“Naima”, recriada de forma excelsa, reaparece no repertório de “Poetic motion” (60m15s), o primeiro CD de piano-solo gravado por Marc. Edição luxuosa do selo francês Sketch, do produtor Philippe Ghielmetti, traz poemas de André Breton, e.e. cummings e Robert Frost “ilustrando” os quadros sonoros pintados pelo impressionista Copland, autor de sete das nove faixas. Aflora o compositor refinado, fecundo, de emoção à flor da pele somada a apurado senso de arquitetura. “Not going gently” é uma obra-prima especial nesta obra-de-arte, modelar na sobriedade de expressão. Variados matizes de som e cor sucedem-se em “Nevertheless”, “Dark territory” e “Bittersweet road”, que mais interrogam do que exclamam, mais comentam do que narram, usando o silêncio como elemento musical. A proeza das proezas acontece no tema do filme “Spartacus”, de Alex North, que recebe tratamento ainda mais imaculado do que o fornecido por Bill Evans no antológico “Conversations with myself” (1964).

Trios sagrados

As surpresas continuam aflorando a cada segundo no decorrer de outro excepcional CD para o selo HatOlogy, “Haunted heart & other ballads” (65m56s), que leva adiante o caminho evolutivo desenvolvido por Keith Jarrett e Jurgen Friedrich no contexto de piano-baixo-bateria. Bastaria ouvir o que Copland, o baixista Drew Gress e o batera Jochen Rueckert (uma das maiores revelações nos últimos tempos) fazem a “Crescent”, um Coltrane safra 64, para constatar o nível de interação telepática. Mas o trio iluminado supera-se e alcança uma dimensão sobre-humana em “Greensleeves” (transformando o desgastado tema tradicional numa peça sagrada), “Soul eyes” (jóia-máxima de Mal Waldron, solo devastador de Gress, variações rítmicas arrepiantes de Rueckert) e, pasmem, “When we dance”, de Sting, momento de fidalga sensualidade. Reinventam ainda Gershwin (“It ain’t necessarily so”), Porter (“Easy to love”) e – tiro de misericórdia - o sublime “Haunted heart”, de Dietz & Schwatz, jazzificado pelo sempiterno trio de Evans, Scott LaFaro e Paul Motian no “Explorations”, de 1961.

Mais saltos mortais sem rede podem ser apreciados em “That’s for sure” (58m24s), registrado na Holanda para a Challenge Records, reunindo Copland, John Abercrombie (guitarra, usando o mínimo de amplificação possível) e o canadense, radicado na Inglaterra, Kenny Wheeler (trompete e flugelhorn), perfeito em todas as intervenções. Formação totalmente inusitada, que somente daria certo com músicos desse alto grau de criatividade, todos na linha de frente trocando idéias o tempo inteiro, ninguém em segundo plano. A intensa conversação rola em oito “originals” e um standard, “How deep is the ocean”, de Irving Berlin, no qual a comunhão entre piano e guitarra evoca o clima dos encontros de Bill Evans (olha ele outra vez!) e Jim Hall. Há três temas de Abercrombie, três de Wheeler e dois de Copland – “When we met” e “Dark territory”, ambos também incluídos em “Poetic motion”. Todos explorados numa atmosfera etérea, lembrando o padrão ECM. Mas com a personalidade do onisciente Marc Copland estampada de forma indelével. Coisa de gênio.

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