LUIZ BONFÁ: INTROSPECTION
Reedição produzida por Arnaldo DeSouteiro (Jazz Station Productions)
Reedição produzida por Arnaldo DeSouteiro (Jazz Station Productions)
Liner Notes written by Arnaldo DeSouteiro for the first ever "official" CD reissue of Luiz Bonfa's "Introspection"
Reissue Produced by Arnaldo DeSouteiro (Jazz Station Productions) and released worldwide by BMG ("RCA 100 Anos de Musica" series, coordinated by Adriana Ramos in 2001)
Sony/BMG 74321872492
Oito obras-primas formando uma obra de arte composta e executada por um gênio. Sem exagero algum, “Introspection” poderia ser assim definido. Mas este sublime CD, o terceiro gravado por Luiz Bonfá (1922-2001) para a RCA norte-americana, em outubro de 72, nunca editado em LP no Brasil, merece aclamação por muitos outros motivos. Cultuado mundialmente como um dos melhores álbuns de violão-solo na história da música, revela uma verdadeira música universal (favor não confundir com a empulhação da world-music) criada, da forma mais original e pessaol possível, por um artista que nunca admitiu fronteiras para a sua arte. E que, ao viajar para os EUA em 57, pagou um preço muito caro por tudo isso, sendo tratado com desprezo, e até deboche, pela mídia brasileira.
Deveria, mas não poderia ter sido diferente. Como suportar, sem inveja ou rancor, o sucesso internacional de alguém que, sem fazer parte de panelinhas, sem mendigar atenção das gravadoras, em suma, sem precisar do Brasil para viver, conseguiu se tornar um dos maiores compositores e violonistas do mundo? Bonfá lançou mais de 50 discos. Trabalhou com Tony Bennett, Elvis Presley, Frank Sinatra, Mary Martin, Julie Andrews, Lalo Schifrin, Eumir Deodato, Dom Um Romão, George Benson, Bobby Scott e Maria Helena Toledo. Além destes, também Sarah Vaughan, Carmen McRae, John McLaughlin, e, mais recentemente, Os Três Tenores (Domingo/Carreras/Pavarotti) gravaram algumas de suas 500 canções.
Entre elas, “Manhã de Carnaval” (um hino extra-oficial brasileiro) e “Samba de Orfeu”, ambas compostas para a trilha sonora de “Black Orpheus”, Oscar de melhor filme estrangeiro e Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1959. Ou seja: muito antes de ouvir bossa nova, o mundo já ouvia Luiz Bonfa! Não por acaso, foi o único artista aplaudido de pé no célebre concerto de bossa no Carnegie Hall, em 62. Claro: a única música já conhecida da platéia americana, dentre todas as tocadas naquela noite, era “Manhã de Carnaval”. E Bonfá continuou sendo ouvido cada vez mais, por conta de sucessos como “Menina Flor” (faixa de seu LP com Stan Getz, “Jazz Samba Encore!”, que permaneceu três meses na parada POP da Billboard em 63), “The Gentle Rain” (do filme homônino, em 65, transformado em jazz standard gravado por Benson, Oscar Peterson, Joe Pass, Jimmy Smith e Diana Krall), e “Almost in Love”, tema principal do filme “Live a Little, Love a Little”, estrelado por Elvis Presley em 68. Sim, Bonfá foi o único autor brasileiro gravado pelo Rei do Rock!
Outras proezas? Escreveu trilhas para 20 filmes (de “Os Cafajestes”, de Ruy Guerra, em 62, até “Prisoner of Rio”, sobre a vida de Ronald Biggs, em 89), excursionou pela Europa, EUA e Austrália, dividiu palcos com Dave Brubeck e Ron Carter, e, nas horas de folga, namorou atrizes como Ava Gardner e Catherine Deneuve. Cada vez mais ignorado no Brasil e reverenciado no exterior, foi agraciado com um modelo de violão desenhado especialmente para ele pela Ovation, em 82. Bateu o recorde de público do clube de jazz Fat Tuesday’s (NY) durante uma temporada em 87. Gravou os elogiadíssimos CDs “Non-Stop To Brazil” (em 89, faturando 4 estrelas e meia na Down Beat), “The Bonfá Magic” (Top 40 nas rádios de jazz dos EUA em 93) e “Almost in Love” (em dupla com Ithamara Koorax, Top 15 na parada japonesa em 96), além de atuar em dois discos de Toots Thielemans, “Brazil Project Vols.1 & 2”.
Sempre atual, porque atemporal, sua obra conquistou adeptos também na cena européia de acid-jazz, gerando faixas para diversas coletâneas. Em 96, a gravação de Koorax para “Empty Glass” ganhou um trip-hop remix. No ano seguinte, o grupo londrino Smoke City sampleou o violão de Bonfá, fazendo groove em “Bahia Soul”, para seu maior hit, “Underwater Love”, que virou jingle da Levi’s. O Planet Hemp sampleou “Jacarandá” na música “Se Liga”. Lord K, roqueiro iconoclasta, adicionou letra à vários temas de Bonfá, além de comporem três novas músicas juntos! O diretor Greg Motolla usou a gravação de Bonfá & Getz para “Sambolero” como tema principal do filme “Daytripper”, exibido no Brasil como “Um dia em Nova Iorque”. Para completar, Tom Cruise selecionou “Manhã de Carnaval”, cantada por Tori Amos, para a trilha de “Missão Impossível 2”. Já debilitado por sérios problemas de saúde, emocionava-se com o permanente interesse por seu trabalho.
Como certamente se emocionaria ao saber desta reedição em CD, pela primeira vez oficialmente, de “Introspection”, um de seus discos favoritos. Captado em outubro de 72 nos estúdios da RCA em NY, derruba vários mitos. Entre eles, o de que Bonfá não era um virtuose. Se não fosse, não conseguiria compor nem tocar nenhum dos temas de “Introspection”...Só não era exibicionista. Dava um show de técnica, sem ruídos, sem esbarrar, sem “trastejar”, mas não fazia da técnica o show. Por isso, seus detratores, tendo como parâmetros mestres do porte de Baden Powell e Rafael Rabello, de pegada forte e rústica, tida equivocadamente como a única “escola do violão brasileiro”, nunca conseguiram compreender a sonoridade límpida e aveludada, o toque sutilíssimo, a execução classuda, a concepção harmônica ultra-sofisticada de Bonfá. Em entrevista a Tribuna da Imprensa, em 89, o Deus do violão declarou: “Eu evito as posições convencionais, as progressões de acordes. Prefiro saltear, usar o oitavado disfarçado. Meu objetivo sempre foi enriquecer mais os acordes, sem malabarismos, e isso não depende só de técnica, é um conjunto de coisas”.
Depois de passar pelos selos Capitol, Atlantic, Philips, Verve, Epic, Mercury e Dot, Bonfá assinou com a RCA em 70. Gravou “The New Face of Bonfá” e, em 71, “Sanctuary”, com Ron Carter, Gene Bertoncini e Airto. Dois discos supimpas, mas de pouca repercussão. Sabia que o terceiro LP também seria o último, porque a RCA não renovaria seu contrato. Então radicalizou. Em dois meses, preparou todas as peças de “Introspection”, que podem ser entendidas como partes de uma suite, por ele próprio definida como “descritiva-impressionista, influenciada por Debussy e Ravel”. Nada de sambinhas, nem de bossa nova, nem de improvisos jazzísticos. Com seu violão, Bonfá pinta paisagens sonoras que conduzem o ouvinte a uma viagem por um santuário sonoro, um passeio ao paraíso.
A análise minuciosa de cada faixa daria um livro. Mas é impossível deixar de ressaltar a aula de dinâmica na execução de “Reflections”. As sutilezas da refinada harmonia de “Concerto for Guitar”. A transformação do violão numa orquestra em miniatura em “Rain” e “Leque”. O humilhante domínio do violão de 12 cordas (uma “craviola” fabricada pela Giannini) em “Summertime love”, de transbordante lirismo, e no transcendental “Missal”, de dimensão celestial. O uso de pedais de efeitos em “Enchanted Mirror”. Por fim, a engenhosidade arquitetônica de “Adventure in Space”, talvez o ponto alto do disco, com passagens de imensa dificuldade técnica, incluindo um tremolo que simula o motor de um foguete em propulsão. Em resumo, oito obras de arte formando uma obra-prima. Em duas palavras, Luiz Bonfá.
Arnaldo DeSouteiro
Amsterdam, 21 de julho de 2001
(Produtor musical, historiador de jazz e MPB, jornalista e educador, membro da IAJE – International Association of Jazz Educators)
Oito obras-primas formando uma obra de arte composta e executada por um gênio. Sem exagero algum, “Introspection” poderia ser assim definido. Mas este sublime CD, o terceiro gravado por Luiz Bonfá (1922-2001) para a RCA norte-americana, em outubro de 72, nunca editado em LP no Brasil, merece aclamação por muitos outros motivos. Cultuado mundialmente como um dos melhores álbuns de violão-solo na história da música, revela uma verdadeira música universal (favor não confundir com a empulhação da world-music) criada, da forma mais original e pessaol possível, por um artista que nunca admitiu fronteiras para a sua arte. E que, ao viajar para os EUA em 57, pagou um preço muito caro por tudo isso, sendo tratado com desprezo, e até deboche, pela mídia brasileira.
Deveria, mas não poderia ter sido diferente. Como suportar, sem inveja ou rancor, o sucesso internacional de alguém que, sem fazer parte de panelinhas, sem mendigar atenção das gravadoras, em suma, sem precisar do Brasil para viver, conseguiu se tornar um dos maiores compositores e violonistas do mundo? Bonfá lançou mais de 50 discos. Trabalhou com Tony Bennett, Elvis Presley, Frank Sinatra, Mary Martin, Julie Andrews, Lalo Schifrin, Eumir Deodato, Dom Um Romão, George Benson, Bobby Scott e Maria Helena Toledo. Além destes, também Sarah Vaughan, Carmen McRae, John McLaughlin, e, mais recentemente, Os Três Tenores (Domingo/Carreras/Pavarotti) gravaram algumas de suas 500 canções.
Entre elas, “Manhã de Carnaval” (um hino extra-oficial brasileiro) e “Samba de Orfeu”, ambas compostas para a trilha sonora de “Black Orpheus”, Oscar de melhor filme estrangeiro e Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1959. Ou seja: muito antes de ouvir bossa nova, o mundo já ouvia Luiz Bonfa! Não por acaso, foi o único artista aplaudido de pé no célebre concerto de bossa no Carnegie Hall, em 62. Claro: a única música já conhecida da platéia americana, dentre todas as tocadas naquela noite, era “Manhã de Carnaval”. E Bonfá continuou sendo ouvido cada vez mais, por conta de sucessos como “Menina Flor” (faixa de seu LP com Stan Getz, “Jazz Samba Encore!”, que permaneceu três meses na parada POP da Billboard em 63), “The Gentle Rain” (do filme homônino, em 65, transformado em jazz standard gravado por Benson, Oscar Peterson, Joe Pass, Jimmy Smith e Diana Krall), e “Almost in Love”, tema principal do filme “Live a Little, Love a Little”, estrelado por Elvis Presley em 68. Sim, Bonfá foi o único autor brasileiro gravado pelo Rei do Rock!
Outras proezas? Escreveu trilhas para 20 filmes (de “Os Cafajestes”, de Ruy Guerra, em 62, até “Prisoner of Rio”, sobre a vida de Ronald Biggs, em 89), excursionou pela Europa, EUA e Austrália, dividiu palcos com Dave Brubeck e Ron Carter, e, nas horas de folga, namorou atrizes como Ava Gardner e Catherine Deneuve. Cada vez mais ignorado no Brasil e reverenciado no exterior, foi agraciado com um modelo de violão desenhado especialmente para ele pela Ovation, em 82. Bateu o recorde de público do clube de jazz Fat Tuesday’s (NY) durante uma temporada em 87. Gravou os elogiadíssimos CDs “Non-Stop To Brazil” (em 89, faturando 4 estrelas e meia na Down Beat), “The Bonfá Magic” (Top 40 nas rádios de jazz dos EUA em 93) e “Almost in Love” (em dupla com Ithamara Koorax, Top 15 na parada japonesa em 96), além de atuar em dois discos de Toots Thielemans, “Brazil Project Vols.1 & 2”.
Sempre atual, porque atemporal, sua obra conquistou adeptos também na cena européia de acid-jazz, gerando faixas para diversas coletâneas. Em 96, a gravação de Koorax para “Empty Glass” ganhou um trip-hop remix. No ano seguinte, o grupo londrino Smoke City sampleou o violão de Bonfá, fazendo groove em “Bahia Soul”, para seu maior hit, “Underwater Love”, que virou jingle da Levi’s. O Planet Hemp sampleou “Jacarandá” na música “Se Liga”. Lord K, roqueiro iconoclasta, adicionou letra à vários temas de Bonfá, além de comporem três novas músicas juntos! O diretor Greg Motolla usou a gravação de Bonfá & Getz para “Sambolero” como tema principal do filme “Daytripper”, exibido no Brasil como “Um dia em Nova Iorque”. Para completar, Tom Cruise selecionou “Manhã de Carnaval”, cantada por Tori Amos, para a trilha de “Missão Impossível 2”. Já debilitado por sérios problemas de saúde, emocionava-se com o permanente interesse por seu trabalho.
Como certamente se emocionaria ao saber desta reedição em CD, pela primeira vez oficialmente, de “Introspection”, um de seus discos favoritos. Captado em outubro de 72 nos estúdios da RCA em NY, derruba vários mitos. Entre eles, o de que Bonfá não era um virtuose. Se não fosse, não conseguiria compor nem tocar nenhum dos temas de “Introspection”...Só não era exibicionista. Dava um show de técnica, sem ruídos, sem esbarrar, sem “trastejar”, mas não fazia da técnica o show. Por isso, seus detratores, tendo como parâmetros mestres do porte de Baden Powell e Rafael Rabello, de pegada forte e rústica, tida equivocadamente como a única “escola do violão brasileiro”, nunca conseguiram compreender a sonoridade límpida e aveludada, o toque sutilíssimo, a execução classuda, a concepção harmônica ultra-sofisticada de Bonfá. Em entrevista a Tribuna da Imprensa, em 89, o Deus do violão declarou: “Eu evito as posições convencionais, as progressões de acordes. Prefiro saltear, usar o oitavado disfarçado. Meu objetivo sempre foi enriquecer mais os acordes, sem malabarismos, e isso não depende só de técnica, é um conjunto de coisas”.
Depois de passar pelos selos Capitol, Atlantic, Philips, Verve, Epic, Mercury e Dot, Bonfá assinou com a RCA em 70. Gravou “The New Face of Bonfá” e, em 71, “Sanctuary”, com Ron Carter, Gene Bertoncini e Airto. Dois discos supimpas, mas de pouca repercussão. Sabia que o terceiro LP também seria o último, porque a RCA não renovaria seu contrato. Então radicalizou. Em dois meses, preparou todas as peças de “Introspection”, que podem ser entendidas como partes de uma suite, por ele próprio definida como “descritiva-impressionista, influenciada por Debussy e Ravel”. Nada de sambinhas, nem de bossa nova, nem de improvisos jazzísticos. Com seu violão, Bonfá pinta paisagens sonoras que conduzem o ouvinte a uma viagem por um santuário sonoro, um passeio ao paraíso.
A análise minuciosa de cada faixa daria um livro. Mas é impossível deixar de ressaltar a aula de dinâmica na execução de “Reflections”. As sutilezas da refinada harmonia de “Concerto for Guitar”. A transformação do violão numa orquestra em miniatura em “Rain” e “Leque”. O humilhante domínio do violão de 12 cordas (uma “craviola” fabricada pela Giannini) em “Summertime love”, de transbordante lirismo, e no transcendental “Missal”, de dimensão celestial. O uso de pedais de efeitos em “Enchanted Mirror”. Por fim, a engenhosidade arquitetônica de “Adventure in Space”, talvez o ponto alto do disco, com passagens de imensa dificuldade técnica, incluindo um tremolo que simula o motor de um foguete em propulsão. Em resumo, oito obras de arte formando uma obra-prima. Em duas palavras, Luiz Bonfá.
Arnaldo DeSouteiro
Amsterdam, 21 de julho de 2001
(Produtor musical, historiador de jazz e MPB, jornalista e educador, membro da IAJE – International Association of Jazz Educators)
Texto para o fundo de estojo
(Notes in the back cover):
Gravado em 1972, em New York, no período em que o violonista e compositor fazia parte do cast da RCA norte-americana, "Introspection" é uma das obras-primas na discografia de Luiz Bonfá (1922-2001), um gênio que antecipou e depois transcendeu a bossa nova. Como provam as irrotuláveis brilhantes composições deste álbum, cultuado como um dos melhores discos de violão-solo na história da música.
Primeira reedição mundial em CD.
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