Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro, publicado no jornal Tribuna da Imprensa em 26 de março de 2004 e reproduzido no website oficial de João Gilberto em http://www2.uol.com.br/joaogilberto/
João Gilberto, gênio da bossa, brilha no Japão
“Novo CD do mestre, gravado em Tokyo, tem lançamento mundial”
Arnaldo DeSouteiro
Entre 11 e 16 de setembro de 2003, durante a primeira turnê de João Gilberto pelo Japão, o Brasil viveu momentos de glória comparáveis ao tetracampeonato no futebol, às vitórias de Fittipaldi e Senna no automobilismo ou de Éder Jofre no boxe. Mas, como já escreveu Armando Nogueira em artigo de grande coragem, traçando um paralelo entre artistas e desportistas: “Quem é bom de bola e vai para o exterior, é permanentemente louvado como legítimo representante da cultura popular brasileira. Já o artista, pobre dele, é absolutamente esquecido; quando não é hostilizado, discriminado, tido como trânsfuga, apátrida... A imprensa especializada talvez ainda não tenha parado para pensar que eles expressam, lá fora, em cenários distantes, a própria alma do povo brasileiro. São tão heróicos quanto os idolatrados craques do nosso futebol”.
Pois o craque João Gilberto teve paciência e soube escolher, com a costumeira sabedoria, a hora exata de aceitar o convite para aquela turnê histórica. Aos 72 anos, depois de recusar dezenas de propostas tentadoras – inclusive para uma performance num estádio de futebol, durante a Copa de 2002 –, finalmente aprovou o projeto apresentado, à sua empresária Carmela Forsin, pela firma Promax comandada por Yutaka Koyama. Foram marcadas três apresentações no moderníssimo Tokyo International Forum, de capacidade para 5 mil pessoas, e uma no Pacific Yokohama. Todos os ingressos, na faixa de 12 mil ienes (o equivalente a 300 reais), esgotaram-se com três meses de antecedência. Às vésperas da excursão, eram oferecidos por cambistas a 200 dólares. Não ficou um lugar vazio em nenhum dos shows.
Ímpossível retratar o estado de comoção do público, bem como a ansiedade e a excitação que tomaram conta do Japão. Assim que a excursão foi anunciada, promotores, jornalistas e artistas não falavam de outro assunto. As gravadoras prepararam, às pressas, relançamentos de inúmeros discos de JG (dos clássicos “Getz/Gilberto” e “Amoroso” até o mais recente “João, Voz e Violão”, passando pelo “Farolito” gravado no México), além de coletâneas como “Portrait in Bossa Nova” (Universal), contemplada com a cotação máxima de 5 estrelas na edição de setembro da Swing Journal, a bíblia do jazz no Japão. Todas as principais revistas de musica – Adlib, Latina, Jazz Life, CD Journal – reservaram páginas e mais páginas para exaltar JG cada vez mais, à medida em que o evento se aproximava. Alguns dos mais populares cantores japoneses se reuniram num CD em homenagem ao mito, “Felicidade/Tribute to João Gilberto” (EMI), recriando “Bim-Bom”, “Ho-ba-la-lá” e outras pérolas.
O frisson chegou a um ponto inacreditável assim que JG desembarcou com sua comitiva em Narita. Não estava ali mais um bossanovista decadente para faturar uns trocados numa temporada em churrascaria. Não estava ali uma “nova sensação da MPB”, como são rotulados com impressionante futilidade os descartáveis “astros” que os atravessadores de igual mediocridade tentam vender ao distinto público japonês a cada mês. Quem estava ali era uma lenda viva da música universal, o criador da bossa-nova, nosso mestre mais respeitado no mundo todo (menos no Brasil, claro, onde será sempre espezinhado por sub-seres incuravelmente invejosos da magnitude alcançada pela arte de JG).
Afinal, além da potência musical, que outro artista no mundo tem igual autonomia sobre sua carreira? Quem mais faz shows apenas quando quer, como quer e onde quer? Quem não precisa da mídia para absolutamente nada? Quem consegue lotar todos os shows mesmo que seja ignorado ou esculhambado pela imprensa? Quem não depende nem mesmo de outros músicos, pois sua voz e violão equivalem a uma orquestra? Quem não corre atrás de patrocínios oficiais nem bajula poderosos em troca de apoios culturais? Quem não precisa se apoiar em panelinhas nem bajular banqueiros mecenas? Pois é: o Brasil de BBBs, fissurado em armações de modelos-manequins e pagodeiros, tem esse herói morando no Leblon e finge que não se dá conta.
Turnê triunfal
Na história do showbizz japonês, todos concordam que nunca se viu nada igual. João Gilberto foi tratado com a mesma devoção reservada aos maiores nomes da história da música, como Miles, Sinatra, Segovia, Horowitz e Rostropovich. E com a mesma “animação”, para não dizer histeria, destinada a astros do pop e do rock como Madonna, Michael Jackson ou os Rolling Stones. Essa mistura de sensações colaborava para tornar tudo ainda mais especial. JG não apenas correspondeu, como superou as expectativas. Aceitou ser tratado como pop-star. Soube atrasar pontualmente todos os shows. A platéia japonesa, geralmente contida, explodia em palmas e gritos antes mesmo do início dos concertos, a medida em que os alto-falantes anunciavam: “João Gilberto já deixou o hotel”, “João Gilberto acaba de chegar ao concert-hall” etc. Todos os passos eram narrados para deleite de fãs que chegavam de várias cidades (principalmente Kyoto e Nagoya) para serem testemunhas-participantes de momentos históricos.
Os que conseguiram lugares somente nas últimas filas, portavam binóculos. Aliás, a única reclamação de alguns foi a de que a imensidão do Tokyo International Forum não era aconchegante, não combinava com o clima introspectivo do show. Em compensação, o som, a cargo do engenheiro Ken Kondo, funcionou sempre impecavelmente. Todos os shows foram gravados e filmados para eventuais lançamentos, dependendo da aprovação de JG. O bendito fruto inicial já é best-seller no Japão, sai em abril na Europa e logo depois no Brasil pela Universal: o CD “João Gilberto in Tokyo” (69m08s), co-produzido por João e Shigeki Miyata, dono do selo Dear Heart. Trata-se não do último show da turnê, quando aconteceu a tal ovação de 25 minutos, mas sim do segundo show, em 12 de setembro, escolhido por JG como o melhor de todos, masterizado no Rio por Ricardo Garcia (o atual expert de confiança do cantor, após a morte de Celinho Martins), que já havia trabalhado com João no disco anterior, produzido por Caetano em 2000. Enviada a fita master para Tokyo, lá foi feita uma remasterização por Shigeki Fujino. Um som límpido, translúcido, veludo puro, equilíbrio perfeito entre voz e violão.
A edição japonesa é primorosa, incluindo dois extensos livretos de 25 e 11 páginas respectivamente, com vários fotos, reprodução das letras em português e japonês, texto assinado pelo crítico Jin Nakahara e uma introdução assinada pelo próprio João: “Agradeço de todo o coração o carinho que recebi do querido povo do Japão. Arigatoo”. No total, o show do dia 12, numa sexta-feira, teve vinte músicas no cardápio oficial, e mais quatro no bis (“O Pato”, “A Felicidade”, a esquecida “As Três da Manhã” de Herivelto Martins, e “Garota de Ipanema”). Para o CD, o perfeccionista obsessivo selecionou quinze. Deletou as duas primeiras músicas do show (“Tim tim por tim tim”, “Caminhos Cruzados”), começando o CD com seu boa-noite em japonês (konban wa!) antes de atacar “Acontece que eu sou baiano”, de Dorival Caymmi. Volta e meia cantada em shows por JG desde os anos 80, finalmente é registrada em disco, com balanço contagiante.
Em termos de reinvenção harmônica e eterna superação, algo de que apenas deuses são capazes, a aula começa na faixa 2, “Meditação”, parceria de Jobim com o subestimado Newton Mendonça. Àquela altura, o público já em transe se delicia com a malemolência de “Doralice” (Caymmi/Antonio Almeida), recebida com aplausos calorosos logo nos primeiros compassos e provocando gritos e assobios no final, por ser muito conhecida no Japão através do LP “Getz/Gilberto”, um disco por lá tão popular quanto “Sgt. Peppers” ou “Thriller”. Igualzinho ao Brasil. Da mesma fonte vem “Corcovado”, seguida por outra letra & música de Tom, “Este seu olhar”. Patenteada por JG em seu terceiro LP para a Odeon, em 1961, foi reinventada em New York em 62 para “The boss of the bossa nova”, numa gravação raríssima solicitada pelo chefão da Atlantic, Nesuhi Ertegun, que a considerava muito parecida com o standard “Bewitched” – registro disponível apenas no CD “A trip to Brazil vol.2”, produzido por este humilde escriba. Agora é novamente redimensionada em Tokyo com indescritível singeleza, cujo ápice acontece quando João repete a frase “gosta de mim” aos 2m40s, na terceira exposição da melodia.
Outro momento brilhante acontece em “Isto aqui o que é?”, gravada no disco “Live at Montreux”, em 85, sob o título “Sandália de prata”. João desta feita canta apenas “Isso aqui/É um pouquinho de Brasil, iaiá”, suprimindo o “ôô” que vinha depois do “Isso aqui”, num drible melódico desconcertante. E não fica nisso. Maior estudioso da obra de JG, o violonista Paulo Levita, da dupla Palmyra & Levita, ao examinar a segunda parte “Olha o jeito nas cadeiras que ela sabe dar/olha só o remelexo que ela sabe dar”, analisa: “Inacreditável como João ‘invade’, com estupenda divisão, o acorde do trecho melódico seguinte, e quando o acorde ‘chega’ ele já está na frente, como se estivessem fugindo um do outro, proporcionando uma cadência nunca vista antes em música”.
O novo registro de “Wave” não supera o do álbum “Amoroso” (embora o trecho final bolado por JG seja impagável) nem “Pra Que Discutir com madame?” bate as versões de “Montreux” e “Live at Umbria Jazz” (gravado em 96, lançado na Europa em 2002, ainda inédito no Brasil). Em compensação, meus amigos, JG ultrapassa os limites da genialidade em “Ligia”, de Jobim. Além de não pronunciar uma só vez o título da canção, canta a “letra alternativa” usada no disco “The best of two worlds”, feito em 76 com Stan Getz & Miucha: “Eu nunca te telefonei, para que se eu sabia, eu jamais tentei/E jamais ousaria as bobagens de amor que outro vai te dizer”. Comenta Levita: “João chega ao esplendor máximo de sua estética, demonstrando a irrelevância do tema em relação ao estilo. A beleza melódica da canção é resplandecida com uma interpretação soberba, na qual harmonia e divisão chegam ao cume da elegância. Temos a sensação de que a voz de João dá o comando para o violão, e este, como um ser vivo, um ente racional, devolve-lhe o acorde exigido. Em outro trecho, o violão, aproveitando um átimo de silêncio do cantor, elabora a harmonia encantadora, sendo retribuído com a voz e a divisão numa cumplicidade sem paralelo”.
Na seqüência, JG mergulha nas lembranças de sua infância em Juazeiro para enfileirar releituras magníficas de seis sambas dos anos 40. Começa com “Louco” (parceria de Henrique de Almeida & Wilson Batista de 1947), outra “novidade” em discos de JG. Passa por “Bolinha de papel” (Geraldo Pereira, 1945, trocando “Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar” por “pra gente gastar”), “Rosa Morena” (Caymmi safra 42) – ambos sucessos do conjunto vocal Anjos do Inferno –, e “Adeus América” (Haroldo Barbosa & Geraldo Jacques, 48), lançado pelo grupo Os Cariocas. E termina com duas jóias consagradas por seu grande ídolo, Orlando Silva: “Preconceito” (Wilson Batista & Marino Pinto, 41) e “Aos pés da cruz” (Zé da Zilda & Marino Pinto, 42). Modernizada por João no seminal “Chega de saudade” (59), gravada por Miles Davis no “Quiet nights” em 62, “Aos pés da cruz” é desta vez usada para fechar o CD, como já acontecera no disco “Eu sei que vou te amar”, de 1994. João cantou ainda “Chega de saudade” e “Desafinado”, sendo ovacionado antes de voltar ao palco para os quatro bis já citados.
Aos fãs insaciáveis, recomenda-se torcer para que os outros shows também venham a ser editados comercialmente, porque o repertório variou muito. Na estréia, dia 11, João reviveu pérolas como “Não Vou Pra Casa” (Antonio Almeida & Roberto Roberti), “Eclipse” (Lecuona) e “Ave Maria no morro” (Herivelto Martins), num total de 17 músicas, mais 8 no bis, levando a platéia ao delírio com “Estate” e “Isaura”. No dia 15, em Yokohama, no show mais longo, foram 16 temas oficiais e 12 no bis, valendo destacar “Samba de uma nota só”, “Foi a noite”, “De conversa em conversa”, a instrumental “Um abraço no Bonfá” que levantou o público, e a pungente “Falta-me alguém” (de Pedro Caetano & Claudionor Cruz). No dia 16, de volta ao Tokyo, tivemos “Bahia com h”, “Samba do avião”, “Sem você”, “Saudade da Bahia” e “Felicidade”, que mereceu o recorde histórico de 25 minutos ininterruptos de aplauso num total de 27 músicas. Jóias do mais genial dentre os gênios, o mestre maior da música brasileira, em mais um momento glorioso de sua carreira.
“Novo CD do mestre, gravado em Tokyo, tem lançamento mundial”
Arnaldo DeSouteiro
Entre 11 e 16 de setembro de 2003, durante a primeira turnê de João Gilberto pelo Japão, o Brasil viveu momentos de glória comparáveis ao tetracampeonato no futebol, às vitórias de Fittipaldi e Senna no automobilismo ou de Éder Jofre no boxe. Mas, como já escreveu Armando Nogueira em artigo de grande coragem, traçando um paralelo entre artistas e desportistas: “Quem é bom de bola e vai para o exterior, é permanentemente louvado como legítimo representante da cultura popular brasileira. Já o artista, pobre dele, é absolutamente esquecido; quando não é hostilizado, discriminado, tido como trânsfuga, apátrida... A imprensa especializada talvez ainda não tenha parado para pensar que eles expressam, lá fora, em cenários distantes, a própria alma do povo brasileiro. São tão heróicos quanto os idolatrados craques do nosso futebol”.
Pois o craque João Gilberto teve paciência e soube escolher, com a costumeira sabedoria, a hora exata de aceitar o convite para aquela turnê histórica. Aos 72 anos, depois de recusar dezenas de propostas tentadoras – inclusive para uma performance num estádio de futebol, durante a Copa de 2002 –, finalmente aprovou o projeto apresentado, à sua empresária Carmela Forsin, pela firma Promax comandada por Yutaka Koyama. Foram marcadas três apresentações no moderníssimo Tokyo International Forum, de capacidade para 5 mil pessoas, e uma no Pacific Yokohama. Todos os ingressos, na faixa de 12 mil ienes (o equivalente a 300 reais), esgotaram-se com três meses de antecedência. Às vésperas da excursão, eram oferecidos por cambistas a 200 dólares. Não ficou um lugar vazio em nenhum dos shows.
Ímpossível retratar o estado de comoção do público, bem como a ansiedade e a excitação que tomaram conta do Japão. Assim que a excursão foi anunciada, promotores, jornalistas e artistas não falavam de outro assunto. As gravadoras prepararam, às pressas, relançamentos de inúmeros discos de JG (dos clássicos “Getz/Gilberto” e “Amoroso” até o mais recente “João, Voz e Violão”, passando pelo “Farolito” gravado no México), além de coletâneas como “Portrait in Bossa Nova” (Universal), contemplada com a cotação máxima de 5 estrelas na edição de setembro da Swing Journal, a bíblia do jazz no Japão. Todas as principais revistas de musica – Adlib, Latina, Jazz Life, CD Journal – reservaram páginas e mais páginas para exaltar JG cada vez mais, à medida em que o evento se aproximava. Alguns dos mais populares cantores japoneses se reuniram num CD em homenagem ao mito, “Felicidade/Tribute to João Gilberto” (EMI), recriando “Bim-Bom”, “Ho-ba-la-lá” e outras pérolas.
O frisson chegou a um ponto inacreditável assim que JG desembarcou com sua comitiva em Narita. Não estava ali mais um bossanovista decadente para faturar uns trocados numa temporada em churrascaria. Não estava ali uma “nova sensação da MPB”, como são rotulados com impressionante futilidade os descartáveis “astros” que os atravessadores de igual mediocridade tentam vender ao distinto público japonês a cada mês. Quem estava ali era uma lenda viva da música universal, o criador da bossa-nova, nosso mestre mais respeitado no mundo todo (menos no Brasil, claro, onde será sempre espezinhado por sub-seres incuravelmente invejosos da magnitude alcançada pela arte de JG).
Afinal, além da potência musical, que outro artista no mundo tem igual autonomia sobre sua carreira? Quem mais faz shows apenas quando quer, como quer e onde quer? Quem não precisa da mídia para absolutamente nada? Quem consegue lotar todos os shows mesmo que seja ignorado ou esculhambado pela imprensa? Quem não depende nem mesmo de outros músicos, pois sua voz e violão equivalem a uma orquestra? Quem não corre atrás de patrocínios oficiais nem bajula poderosos em troca de apoios culturais? Quem não precisa se apoiar em panelinhas nem bajular banqueiros mecenas? Pois é: o Brasil de BBBs, fissurado em armações de modelos-manequins e pagodeiros, tem esse herói morando no Leblon e finge que não se dá conta.
Turnê triunfal
Na história do showbizz japonês, todos concordam que nunca se viu nada igual. João Gilberto foi tratado com a mesma devoção reservada aos maiores nomes da história da música, como Miles, Sinatra, Segovia, Horowitz e Rostropovich. E com a mesma “animação”, para não dizer histeria, destinada a astros do pop e do rock como Madonna, Michael Jackson ou os Rolling Stones. Essa mistura de sensações colaborava para tornar tudo ainda mais especial. JG não apenas correspondeu, como superou as expectativas. Aceitou ser tratado como pop-star. Soube atrasar pontualmente todos os shows. A platéia japonesa, geralmente contida, explodia em palmas e gritos antes mesmo do início dos concertos, a medida em que os alto-falantes anunciavam: “João Gilberto já deixou o hotel”, “João Gilberto acaba de chegar ao concert-hall” etc. Todos os passos eram narrados para deleite de fãs que chegavam de várias cidades (principalmente Kyoto e Nagoya) para serem testemunhas-participantes de momentos históricos.
Os que conseguiram lugares somente nas últimas filas, portavam binóculos. Aliás, a única reclamação de alguns foi a de que a imensidão do Tokyo International Forum não era aconchegante, não combinava com o clima introspectivo do show. Em compensação, o som, a cargo do engenheiro Ken Kondo, funcionou sempre impecavelmente. Todos os shows foram gravados e filmados para eventuais lançamentos, dependendo da aprovação de JG. O bendito fruto inicial já é best-seller no Japão, sai em abril na Europa e logo depois no Brasil pela Universal: o CD “João Gilberto in Tokyo” (69m08s), co-produzido por João e Shigeki Miyata, dono do selo Dear Heart. Trata-se não do último show da turnê, quando aconteceu a tal ovação de 25 minutos, mas sim do segundo show, em 12 de setembro, escolhido por JG como o melhor de todos, masterizado no Rio por Ricardo Garcia (o atual expert de confiança do cantor, após a morte de Celinho Martins), que já havia trabalhado com João no disco anterior, produzido por Caetano em 2000. Enviada a fita master para Tokyo, lá foi feita uma remasterização por Shigeki Fujino. Um som límpido, translúcido, veludo puro, equilíbrio perfeito entre voz e violão.
A edição japonesa é primorosa, incluindo dois extensos livretos de 25 e 11 páginas respectivamente, com vários fotos, reprodução das letras em português e japonês, texto assinado pelo crítico Jin Nakahara e uma introdução assinada pelo próprio João: “Agradeço de todo o coração o carinho que recebi do querido povo do Japão. Arigatoo”. No total, o show do dia 12, numa sexta-feira, teve vinte músicas no cardápio oficial, e mais quatro no bis (“O Pato”, “A Felicidade”, a esquecida “As Três da Manhã” de Herivelto Martins, e “Garota de Ipanema”). Para o CD, o perfeccionista obsessivo selecionou quinze. Deletou as duas primeiras músicas do show (“Tim tim por tim tim”, “Caminhos Cruzados”), começando o CD com seu boa-noite em japonês (konban wa!) antes de atacar “Acontece que eu sou baiano”, de Dorival Caymmi. Volta e meia cantada em shows por JG desde os anos 80, finalmente é registrada em disco, com balanço contagiante.
Em termos de reinvenção harmônica e eterna superação, algo de que apenas deuses são capazes, a aula começa na faixa 2, “Meditação”, parceria de Jobim com o subestimado Newton Mendonça. Àquela altura, o público já em transe se delicia com a malemolência de “Doralice” (Caymmi/Antonio Almeida), recebida com aplausos calorosos logo nos primeiros compassos e provocando gritos e assobios no final, por ser muito conhecida no Japão através do LP “Getz/Gilberto”, um disco por lá tão popular quanto “Sgt. Peppers” ou “Thriller”. Igualzinho ao Brasil. Da mesma fonte vem “Corcovado”, seguida por outra letra & música de Tom, “Este seu olhar”. Patenteada por JG em seu terceiro LP para a Odeon, em 1961, foi reinventada em New York em 62 para “The boss of the bossa nova”, numa gravação raríssima solicitada pelo chefão da Atlantic, Nesuhi Ertegun, que a considerava muito parecida com o standard “Bewitched” – registro disponível apenas no CD “A trip to Brazil vol.2”, produzido por este humilde escriba. Agora é novamente redimensionada em Tokyo com indescritível singeleza, cujo ápice acontece quando João repete a frase “gosta de mim” aos 2m40s, na terceira exposição da melodia.
Outro momento brilhante acontece em “Isto aqui o que é?”, gravada no disco “Live at Montreux”, em 85, sob o título “Sandália de prata”. João desta feita canta apenas “Isso aqui/É um pouquinho de Brasil, iaiá”, suprimindo o “ôô” que vinha depois do “Isso aqui”, num drible melódico desconcertante. E não fica nisso. Maior estudioso da obra de JG, o violonista Paulo Levita, da dupla Palmyra & Levita, ao examinar a segunda parte “Olha o jeito nas cadeiras que ela sabe dar/olha só o remelexo que ela sabe dar”, analisa: “Inacreditável como João ‘invade’, com estupenda divisão, o acorde do trecho melódico seguinte, e quando o acorde ‘chega’ ele já está na frente, como se estivessem fugindo um do outro, proporcionando uma cadência nunca vista antes em música”.
O novo registro de “Wave” não supera o do álbum “Amoroso” (embora o trecho final bolado por JG seja impagável) nem “Pra Que Discutir com madame?” bate as versões de “Montreux” e “Live at Umbria Jazz” (gravado em 96, lançado na Europa em 2002, ainda inédito no Brasil). Em compensação, meus amigos, JG ultrapassa os limites da genialidade em “Ligia”, de Jobim. Além de não pronunciar uma só vez o título da canção, canta a “letra alternativa” usada no disco “The best of two worlds”, feito em 76 com Stan Getz & Miucha: “Eu nunca te telefonei, para que se eu sabia, eu jamais tentei/E jamais ousaria as bobagens de amor que outro vai te dizer”. Comenta Levita: “João chega ao esplendor máximo de sua estética, demonstrando a irrelevância do tema em relação ao estilo. A beleza melódica da canção é resplandecida com uma interpretação soberba, na qual harmonia e divisão chegam ao cume da elegância. Temos a sensação de que a voz de João dá o comando para o violão, e este, como um ser vivo, um ente racional, devolve-lhe o acorde exigido. Em outro trecho, o violão, aproveitando um átimo de silêncio do cantor, elabora a harmonia encantadora, sendo retribuído com a voz e a divisão numa cumplicidade sem paralelo”.
Na seqüência, JG mergulha nas lembranças de sua infância em Juazeiro para enfileirar releituras magníficas de seis sambas dos anos 40. Começa com “Louco” (parceria de Henrique de Almeida & Wilson Batista de 1947), outra “novidade” em discos de JG. Passa por “Bolinha de papel” (Geraldo Pereira, 1945, trocando “Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar” por “pra gente gastar”), “Rosa Morena” (Caymmi safra 42) – ambos sucessos do conjunto vocal Anjos do Inferno –, e “Adeus América” (Haroldo Barbosa & Geraldo Jacques, 48), lançado pelo grupo Os Cariocas. E termina com duas jóias consagradas por seu grande ídolo, Orlando Silva: “Preconceito” (Wilson Batista & Marino Pinto, 41) e “Aos pés da cruz” (Zé da Zilda & Marino Pinto, 42). Modernizada por João no seminal “Chega de saudade” (59), gravada por Miles Davis no “Quiet nights” em 62, “Aos pés da cruz” é desta vez usada para fechar o CD, como já acontecera no disco “Eu sei que vou te amar”, de 1994. João cantou ainda “Chega de saudade” e “Desafinado”, sendo ovacionado antes de voltar ao palco para os quatro bis já citados.
Aos fãs insaciáveis, recomenda-se torcer para que os outros shows também venham a ser editados comercialmente, porque o repertório variou muito. Na estréia, dia 11, João reviveu pérolas como “Não Vou Pra Casa” (Antonio Almeida & Roberto Roberti), “Eclipse” (Lecuona) e “Ave Maria no morro” (Herivelto Martins), num total de 17 músicas, mais 8 no bis, levando a platéia ao delírio com “Estate” e “Isaura”. No dia 15, em Yokohama, no show mais longo, foram 16 temas oficiais e 12 no bis, valendo destacar “Samba de uma nota só”, “Foi a noite”, “De conversa em conversa”, a instrumental “Um abraço no Bonfá” que levantou o público, e a pungente “Falta-me alguém” (de Pedro Caetano & Claudionor Cruz). No dia 16, de volta ao Tokyo, tivemos “Bahia com h”, “Samba do avião”, “Sem você”, “Saudade da Bahia” e “Felicidade”, que mereceu o recorde histórico de 25 minutos ininterruptos de aplauso num total de 27 músicas. Jóias do mais genial dentre os gênios, o mestre maior da música brasileira, em mais um momento glorioso de sua carreira.
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