Story about João Gilberto printed in the May 30, 1990, of "Veja" magazine
Wriitten by Ruy Castro
Arquivo VEJA: Bossa fora
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30 de maio de 1990
Bossa fora da cápsula
Chega de saudade: depois de dez anos sem gravar em estúdio, o misterioso e genial João Gilberto sai do apartamento para fazer um novo disco
Ruy Castro
Mayrton Bahia, diretor artístico da Polygram, comportou-se como se a gravação do disco fosse a coisa mais corriqueira do mundo. Já em abril, Mayrton afixou no quadro-cronograma da gravadora o aviso com o dia e a hora do comparecimento do cantor e violonista ao estúdio, sem dar-lhe qualquer destaque. Nos corredores da Polygram, no entanto, a confiança do produtor em que se tratava de uma gravação normal era motivo de risotas entre os funcionários devido a um detalhezinho e a um detalhezão. Primeiro, o artista marcara a gravação para o horário pouco ortodoxo das 11 da noite e não requisitara nenhum outro instrumentista para acompanhá-lo. Hiperdetalhe, definitivo: o artista em questão era João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, um baiano de Juazeiro que completa 59 anos no próximo dia 10, é reconhecido mundialmente como um músico genial e, cercado por uma aura de excentricidade, continua a ser um mistério para os próprios brasileiros. Como em 32 anos de carreira João Gilberto só gravou doze discos, três deles ao vivo e o último em estúdio há mais de dez anos, havia motivo de sobra para se duvidar que ele aparecesse na Polygram, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Às 10 da noite da quarta-feira, dia 16 passado, um misto de apreensão e cuidado com o conforto de João Gilberto fez com que um radiotáxi fosse enviado da Polygram ao apart-hotel em que o cantor mora, no Leblon. Cuidado desnecessário. Meia hora antes do horário combinado o cantor chegou ao estúdio, ele mesmo guiando o seu Monza grafite 1987, vestindo um paletó impecável. João Gilberto cumprimentou a equipe de gravação, brincou com o técnico Celinho Martins, um velho amigo com quem gravou vários discos, e começou a dedilhar seu violão com preciosos 25 anos de uso - um Tarrega da Di Giorgio, de boca ovalada, equipado com cordas La Bella 850-B pretas, de náilon (semitensas, para que as notas se prolonguem). A partir daí, gravou como se não fizesse outra coisa na vida.
CONQUISTAS - Na primeira noite, tocando e cantando até as 4 da manhã, João Gilberto gravou quatro canções. Na noite seguinte, foram outras sete - um recorde em sua carreira. Na sexta-feira, última noite, João Gílberto gravou mais duas músicas e refez algumas das anteriores. No total, cerca de dezoito horas de gravação para treze canções - um ritmo a jato para qualquer músico - registradas em oito fitas digitais que Mayrton Bahia guarda como as jóias da Coroa e não se cansa de ouvir. Do repertório do disco fazem parte preciosidades como Ave Maria no Morro, de Herivelto Martins, Rosinha, de Jonas Silva (integrante do extinto conjunto vocal Garotos da Lua e que depois teve seu lugar no grupo ocupado pelo próprio João Gilberto), Sampa, de Caetano Veloso, Há Quem Sambe, de Janet de Almeida, o bolero italianado Malaga e a americana You Do Something to Me, de Cole Porter. Os poucos e felizes que escutaram trechos das fitas garantem que João Gilberto está melhor do que nunca: os arranjos estão repletos de novas harmonias, a batida do violão é como sempre uma aula de ritmo, a voz está límpida e cheia de suingue e a interpretação de Sampa ficou um deslumbre, um hino de amor à cidade onde ele estourou em 1958, antes que no Rio.
O repertório do novo disco pode parecer eclético, mas na raiz de todas as músicas está um certo jeito de cantar e tocar violão inaugurado em julho de 1958. Foi naquele mês, há mais de trinta anos, que João Gilberto lançou um disco em 78 rpm contendo a sua voz e o seu violão em Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e Bim Bom, dele próprio, em que sintetizou as conquistas musicais de sua geração num estilo que ficou conhecido como Bossa Nova. O resto é história. Especialistas em números, como André Midani - hoje presidente da gravadora WEA e em 1958 um dos responsáveis pela gravação de Chega de Saudade na Odeon -, estimam que apenas de 1962 a 1969 a Bossa Nova rendeu, a preços de hoje, 4 bilhões de dólares no mercado internacional - um dinheiro que foi pulverizado no exterior e do qual só uma poeira chegou ao bolso de suas estrelas.
Astro absoluto da Bossa Nova, João Gilberto deixou o Brasil em 1963 e tornou-se um rosto quase invisível, mesmo para seus fãs mais apaixonados. No final daquele ano, depois de passar alguns meses na Europa, ele foi para os Estados Unidos, onde viveu até 1970. Em seguida, passou dois anos no México e voltou aos Estados Unidos, morando sempre em Nova York ou nas suas imediações. Mesmo com diversas viagens ao Brasil, pouco se sabia de João Gilberto em seu próprio país.
Em 1980, ele se estabeleceu silenciosamente no Rio. Seus shows são raros - e, quando se apresenta, o suspense sobre se ele vai aparecer ou dar o bolo só se encerra no momento em que entra no palco. Tudo contribui para esse suspense. Muitas vezes é o som, que não o agrada. Em outras, o organizador do evento desrespeita a proibição de vender camisetas com a sua estampa na porta do show. Mas pode ser também um fato mais trivial, como o que atrasou durante horas um show seu na Bahia, em 1978: João Gilberto ficou indeciso entre vestir uma calça azul e outra verde - se escolhesse uma, a outra poderia ficar "triste".
ARRANJOS - Na gravação de seu novo disco no Rio, o cantor de Desafinado não teve nenhum momento de indecisão, já que se preparou longamente para fazê-lo. "Há pelo menos três anos João vinha conversando sobre a sua vontade de gravar um disco no Brasil", conta Carmela Forsin, empresária do cantor há quatro anos e peça-chave para que o LP fosse finalmente gravado. "Tínhamos duas alternativas internacionais para a gravação, uma delas na Suíça, mas ele se inclinou cada vez mais a fazer algo brasileiro, do início ao fim da produção." Convite para se apresentar no exterior, aliás, é o que não falta. "Recebemos solicitações de todos os lugares para o João fazer shows, mas os campeões continuam sendo o Japão, a Itália, a França e os Estados Unidos", diz Gil Lopes, marido e sócio de Carmela. João Gilberto se apresenta em salas de concerto de Roma e Paris, é quase uma atração fixa no festival anual de Montreux, na Suíça, e faz regularmente o circuito de verão dos clubes da Côte d'Azur.
No momento, o cantor não tem shows marcados e se dedica a finalizar o novo disco. É preciso primeiro escolher, entre as dezenas de interpretações, quais serão selecionadas para compor as faixas do disco. Depois, algumas das músicas serão enviadas aos Estados Unidos, onde outros instrumentos serão mixados ao violão e à voz de João Gilberto. Entre os arranjadores cogitados para realizar essa tarefa estão Johnny Mandel (que fez a mesma coisa para algumas faixas de Brasil, o último disco em estúdio de João Gilberto) e Claus Ogerman (especialista em arranjos com cordas). Nas sessões na Polygram, o cantor falou como gostaria que determinadas canções fossem arranjadas, e Mayrton Bahia gravou tudo. Ele pretende usar essas orientações como guia quando preparar a mixagem do disco. Outra idéia acalentada na gravadora é a de lançar um disco com dez faixas e um compact disc com treze, mas a decisão depende da palavra final de João Gilberto.
"Fico feliz com o João ter feito esse disco em tranqüilidade, pois sei o quanto ele trabalha até ter tudo planejado e entrar no estúdio para gravar", diz a cantora Miúcha, irmã de Chico Buarque, que se casou com João Gilberto há 25 anos, pouco depois de se conhecerem em Paris, durante um show da chilena Violeta Parra, no La Candelaria. Depois, o casal teve a filha Bebel, hoje com 24 anos, se separaram em 1971 e continuaram bons amigos. "Como ele é perfeccionista, às vezes as coisas se complicam, mas, além de ser o melhor produtor de música que conheço, o João é um sedutor irresistível. Ele fala diretamente ao coração das pessoas." O perfeccionismo e os poderes encantatórios do arauto da Bossa Nova se estendem por domínios extramusicais. Que o diga Garrincha, ex-maître da churrascaria Plataforma e hoje baseado no Buffalo Grill. Há dez anos Garrincha prepara o almoço de João Gilberto - só que sempre às 11 horas da noite, pois o cantor funciona num fuso horário que os relógios normais desconhecem.
DENTISTA A DOMICÍLIO - "João é detalhista, repara em tudo e reclama se acha que o prato não está bom", diz o maître. A rotina de Garrincha e de seu cliente especial é invariável. O cantor telefona meia-hora antes, pergunta se há alguma novidade no cardápio e pede como sempre um steak ao sal grosso, alternando o complemento entre salada verde e arroz com batata palha. Garrincha providencia a comida e encarrega o copeiro Antonio Francisco, o "Toninho", de levá-la ao apart-hotel do cantor. Toninho liga da recepção do hotel-residência para o apartamento do 29º andar, recebe autorização para subir, toca a campainha e entrega as bandejas pela porta entreaberta. Em troca, recolhe o pagamento (em dinheiro), uma gorjeta (generosa) e as bandejas e pratos da véspera. Há dois anos nessa rotina, Toninho nunca viu João Gilberto. Já Garrincha é comparativamente íntimo do homem. Houve uma época em que ele fazia pessoalmente as entregas e até hoje o cantor manda-lhe seus discos. "Ele sabe a data do aniversário de meus filhos e sempre pergunta por eles", conta o maître.
São quase compadres, mas Garrincha, assim como Toninho, só "viu" João Gilberto nas rápidas passagens de bandejas pela porta. Não há nada demais nisso, já que pouquíssimas pessoas conseguem adentrar o confortável quarto-sala-banheiro-cozinha em que o cantor vive há nove anos e pelo qual desembolsa cerca de 100.000 cruzeiros por mês, com direito a roupa lavada. Nem a faxineira do apart-hotel tem permissão para entrar. Uma vez por mês, o próprio João Gilberto enverga um avental, mune-se de balde, rodo e espanador e faz a faxina - evitando lavar os copos, com receio de cortar as mãos. Uma eventual amiga ou namorada cuida dos copos. O lustre de sua sala está adernando perigosamente e, um dia desses, pode despencar porque o cantor não admite que um eletricista desconhecido entre nos seus domínios para consertá-lo. Em compensação, ele recentemente se submeteu a um trabalhoso tratamento dentário a domicílio. Não foi idéia sua. O dentista, seu antigo companheiro de violão e ex-catedrático da Universidade Federal do Rio de Janeiro, insistiu em transferir parte do seu consultório para o apartamento de João Gilberto.
Histórias como essas parecem ser apenas mais algumas contribuições ao folclore sobre João Gilberto, que, em volume de casos, já deixa no chinelo o do Saci-pererê e o do Curupira. Ele detesta as histórias que correm a seu respeito, mesmo as verdadeiras, porque elas são mixadas ao tal folclore e o fazem passar por excêntrico. Nenhuma delas o irrita mais do que a do gato que teria pulado de uma janela do 10º andar, depois de ficar trancado doze horas com ele dentro de um apartamento ouvindo-o repetir infatigavelmente um único acorde. Na realidade, o gato - um siamês preto chamado Gato - não se suicidou, e sim cochilou no parapeito e despencou. João Gilberto, que gosta muito de bichos, nem estava no apartamento na hora do desastre.
A LENDA DE ELBA RAMALHO - "Vejo pelo meu caso que pelo menos metade das histórias que se contam sobre o João é mentira", opina a cantora Elba Ramalho. "Todo mundo comenta que um dia eu arranjei um baralho para jogar com ele e o João fez com que eu o passasse para ele por debaixo da porta, carta por carta. Só que isso nunca aconteceu." Elba conta que certa noite, num hotel em São Paulo, João lhe pediu pelo telefone que deixasse uma determinada encomenda na porta do seu quarto e desse três batidinhas na porta. "Ele se desculpou por não poder receber-me pessoalmente porque não estava se sentindo muito bem", diz a cantora.
João Gilberto tornou-se de tal forma um prisioneiro de lendas, como a de Elba Baralho, que teria de ficar ainda mais recluso para que as pessoas parassem de considerá-lo esquisito, ou coisa pior. Acontece que ele não teria como ficar mais recluso - em comparação com o cantor de Desafinado, alguns monges tibetanos levam uma vida social digna de sair na coluna do Zózimo. Ele não almoça ou janta fora, não freqüenta bares, não vai a shows ou ao cinema, praias nem pensar, não caminha em calçadões e só aparece na casa de alguém com a garantia de que não encontrará estranhos. Também não dá entrevistas, só posa para fotógrafos amigos e não aceita fazer comerciais. Seus especiais para a TV são uma operação tão angustiante, para todos os envolvidos, que cada rede só consegue produzir um no espaço de uma vida - ainda que, espantosamente, João Gilberto tenha sido apresentador de um programa chamado Musical Três Leões, na falecida TV Tupi, em 1960.
Ao mesmo tempo que economiza saídas à rua, o cantor praticamente não é visitado. De supetão, no entanto, ele convida alguém para ir ao seu apartamento - e o faz de forma tão charmosa que, não importa a hora da madrugada, a pessoa vai correndo, com receio de que ele mude de idéia. Alguns dos poucos privilegiados atuais são um seu velho amigo, o pianista João Donato, o produtor teatral Otávio Terceiro, o crítico de música do jornal carioca Tribuna da Imprensa Arnaldo DeSouteiro, uma ou outra namorada, além de Bebel e Miúcha. (A primeira mulher dele, a cantora Astrud Gilberto, vive nos Estados Unidos com o outro filho, o contrabaixista João Marcelo, 30 anos, de quem João Gilberto sempre fala com carinho.) Dito assim, parece que há uma multidão na sala do cantor. Mas ele recebe um visitante de cada vez, os convites são raros e nenhum dos freqüentadores tem direitos adquiridos - nem mesmo a namorada. A recepção do hotel-residência tem instruções suas para brecar qualquer um que queira subir sem o salvo-conduto dado pelo interfone.
PASSEIOS À PEDRA - Quem quase se tornou detentor de um salvo-conduto fixo foi o musicólogo e professor de violão Almir Chediak, autor do recém-lançado Songbook da Bossa Nova. Nos últimos três anos, Chediak falou pelo menos uma vez por semana com João Gilberto, na preparação de um songbook todo dedicado a ele, que promete ser espetacular. Seu trabalho consistia em ouvir todos os discos de João Gilberto e transformar em partituras aquelas complexas harmonias ao violão. Depois, Chediak levava as partituras ao apartamento do cantor para que ele as corrigisse. Uma semana depois, pegava-as de volta, para passar a limpo as emendas, e deixava outras. Numa dessas idas e vindas, João Gilberto até lhe confiou seu precioso violão, para que Chediak trocasse as cordas e o afinasse. Com toda essa intimidade e afinação profissional, Chediak também nunca viu o cantor. O vaivém de partituras era feito pela fresta da porta, e o violão, depois de apanhado na recepção do apart-hotel, teve de ser deixado na porta do apartamento. Chediak ficou de tocaia no corredor e, minutos depois, pôde contemplar a mão de João Gilberto recolhendo o instrumento com rapidez.
Nem tudo é reclusão monástica na vida do cantor. Às vezes, ele liga para um amigo, ou para a namorada, e o acorda para fazerem juntos um belo programa: dar um pulo, cada qual no seu carro, à Pedra de Guaratiba, na distante Baía de Sepetiba, a quase duas horas do Leblon. Há um consenso entre os seus amigos de que João Gilberto dirige mal, talvez motivado pelo fato de que, quando vê uma longa reta pela frente, ele goste de dirigir de olhos fechados, "guiado pelas estrelas", como diz - ou por um santo muito forte, como dizem os outros. À beira da praia deserta, de paletó e a salvo da areia, ele divaga, canta e toca violão, contempla o céu, fala de astrologia (é um perito no signo de Gêmeos - por acaso, o seu) ou apenas medita. Já aconteceu de, numa dessas meditações, perder-se do amigo, distrair-se e voltar para casa sem avisá-lo como aconteceu com o violonista e maestro Waltel Branco.
Seu atual Monza foi uma aquisição conveniente. Até comprá-lo, há três anos, João Gilberto usava carros de locadoras. O automóvel era estacionado na garagem do apart-hotel e lá ficava, dias a fio, com o aluguel correndo. Até que o cantor mandava a locadora retirá-lo, e, às vezes, coincidia que naquela mesma noite ele sentia vontade de ir à Pedra de Guaratiba. Amigos o convenceram a comprar um carro, mas seu meio de transporte predileto para as curtas distâncias é o radiotáxi. Com isso, o Monza pode ficar um tempão sem uso na garagem, a ponto de descarregar a bateria. Há poucas semanas, Almir Chediak encarregou-se de trocar a bateria do carro. Nada, absolutamente nada, falta a João Gilberto. Nada que queira ou precise, bem entendido, porque há sempre um amigo disposto a providenciar o desejado. E todos eles fazem o impossível para evitar o mínimo risco de contrariá-lo. "Tenho uma relação tão boa com meu pai que prefiro não falar dele, para evitar qualquer problema", diz Bebel, filha e amiga.
Essa maneira de viver protege João Gilberto do mundo e até das coisas de que gosta. Até há pouco, por exemplo, como o então candidato Fernando Collor, ele não tinha um aparelho de som mesmo com todo o seu amor pela música brasileira. Isso porque João Gilberto prefere tocar, cantar e reaprender o seu estilo a ficar ligadão nas últimas modas musicais. Tanto é assim que só recentemente ele comprou um aparelho portátil com laser, rádio e gravador. No disc laser ele escuta seus discos antigos, que estão sendo relançados em compact disc. No gravador, ensaiou músicas que depois cantou no estúdio da Polygram. O rádio ele escuta pouco. Tem um toca-fitas no Monza, mas a única fita cassete vista no porta-luvas contém o disco novo do conjunto vocal Os Cariocas, seus camaradas nos anos 50.
TELEFONEMAS EM LONGA METRAGEM - João Gilberto transformou seu apartamento numa cápsula, tendo como únicos meios de contato com o mundo exterior o telefone e a televisão. Boa parte do tempo, com o aparelho de TV sem som, ele dá uma olhada em tudo: gosta de Pantanal e Rainha da Sucata, assiste a programas ultramatutinos de música sertaneja, de esportes, telejornais, Documento Especial, o que for. Tem predileção pelas competições esportivas, com o futebol à frente, já que é um especialista no assunto e um expert em seleção brasileira. Costuma acompanhar alguns jogos ao violão, com a televisão silenciosa, para ter a impressão de que os jogadores estão se movimentando através de sua música. Mas quando um jogador erra um passe ou perde um gol, João Gilberto o fulmina com um acorde dissonante: no peito dos superafinados também bate um coração de torcedor.
Ele gosta de Cid Moreira e de todos os locutores, mas tem uma queda por Boris Casoy. Entusiasmou-se com a notícia de que o TJ Brasil mudaria de horário, passando a concorrer diretamente com o Jornal Nacional, mas decepcionou-se com o jornalista do SBT de Silvio Santos: "No dia da estréia, às 8 da noite, lá estava eu ligado na televisão do Silvio, prestigiando, dizendo 'vai, Boris!', mas tudo deu errado". O motivo da frustração foi uma simples mudança no arranjo da música de apresentação do TJ Brasil. Pois é, eles não contavam que haveria João Gilberto para percebê-la... Através de um intermediário, o cantor de ouvidos implacáveis conseguiu que seus protestos chegassem a Boris Casoy, que por sua vez tentou voltar ao arranjo antigo. Mas a marcha a ré emperrou e a interpretação antiga não voltou ao vídeo, para desgosto do cantor.
O telefone, para João Gilberto, é uma espécie de cordão umbilical com a vida - real ou irreal. Nesse departamento, ninguém o bate em poder de sedução. É capaz de falar horas seguidas com pessoas que nunca viu e nunca verá, convencê-las de que elas têm poderes de que jamais haviam se tocado e encantá-las até a exaustão. Com doses generosas de simpatia e charme, João Gilberto as deixa tão hipnotizadas que elas enfrentam maratonas noturnas de até sete horas ao telefone e nem se incomodam em esperar do outro lado da linha enquanto ele faz um intervalo para jantar, digamos às 4 da manhã. Essas pessoas desmentem enfaticamente a lenda de que ele não fala. "Mas ele só fala", espanta-se uma jovem que há dois anos troca telefonemas em longa metragem com o cantor e que até hoje, como é de praxe, também nunca o viu. Mas ele fala de quê? "Ele fala de tudo, ué!", responde ela.
Por tudo entenda-se que João Gilberto fala de estilos de violão, antigos conjuntos vocais, técnicas de respiração iogue, religiões orientais, táticas de futebol, filmes eróticos a que assiste em vídeo, da vida depois da morte, da cidade de São Paulo, de poesia, da natureza, do seu amor pelo Brasil, de Bossa Nova e critica meio mundo. Também imita sons de navio e trem, finge-se de locutor de futebol, brinca que é argentino e conversa em castelhano, pergunta com interesse como vai a família, recita de cor o poema A Morte do Leiteiro, de Carlos Drummond de Andrade, e descreve uma luta de boxe dos anos 60 como se tivesse acabado de assisti-la. Às vezes, espicha-se no sofá, recosta o aparelho numa almofada e canta e toca violão ao telefone, só para você.
Com essa vida de asceta, o homem que transformou O Pato, dos desconhecidos Jaime Silva e Neusa Teixeira, num standard do repertório internacional, vai muito bem. Sua principal fonte de renda continua a ser o desempenho fora do Brasil de seus velhos LPs, contendo os clássicos da Bossa Nova. Os discos podem não freqüentar as paradas desde 1964, quando Garota de Ipanema foi um acontecimento nos Estados Unidos, mas estrelam há quase trinta anos o catálogo permanente de gravadoras em quatro continentes. Vendem em gotas, mas em dólares, e a torneira não seca nunca. E se há um brasileiro para quem o Plano Collor foi uma pluma que o vento vai levando pelo ar, tinha de ser João Gilberto. Pioneiro do investimento no colchão-ouro, ele não fazia aplicações financeiras, não rolava dívidas, não tinha dinheiro na poupança para comprar casa própria mesmo porque nunca se interessou em ter uma.
Mas não o incluam, por favor, entre descamisados de qualquer espécie, até por uma questão de elegância: seu guarda-roupa abriga uma coleção de camisas azul-celeste, com o monograma Y.S.L. bordado com retroses franceses, alinhados ternos da Brooks Brothers de Nova York, gravatas italianas e sapatos de verniz. Esse guarda-roupa pode parecer excessivo para um homem que raramente é visto em público, mas as verdadeiras estrelas de seu armário são os pijamas: às dezenas, e nenhum deles de mangas ou calças curtas. Noblesse oblige, ele usa pelo menos três pijamas por dia.
De pijama, seu uniforme de combate, João Gilberto se refugia no apartamento e faz o mundo e os amigos girarem ao seu redor. Em troca, ele oferece doses precisas e preciosas de seu gênio - como agora, quando grava outro disco. O incrível é que o mundo ganha com a troca, com a infalível arte de João Gilberto.