[27/NOV/2004] Jornal do Brasil
Egresso da bossa nova, Mário Castro Neves está de volta em disco que privilegia seu lado autoral
Tárik de Souza
Mário Castro Neves (ao centro) e o Samba S.A.: Manuel Gusmão (à esq.), Ithamara Koorax, Ana Zinger e César Machado
''Se o coração da gente entendeu que assim tá bom/ não há quem me convença que eu saí fora do tom/ pergunto pra você se está errado um samba assim/ se não é brasileiro quem não toca tamborim''
Filho mais velho de uma família altamente musical, Mário Castro Neves abandonou o barco da bossa pouco antes dele zarpar em direção ao sucesso internacional. Pianista, ele liderava, em meados dos 50, o American Jazz Combo com os irmãos Oscar (violonista), Iko (baixista) e Léo (baterista). Com a adesão do vocal de Manuel Gusmão, o quinteto tornou-se Os Modernos. Formado em química, Mário encarava a música como hobby. Saiu de cena e passou a direção a Oscar, que veio a nomear o grupo (onde ficou apenas um irmão, Iko), um dos destaques no célebre concerto da bossa nova no Carnegie Hall, de Nova York, em 1962. Oscar estabeleceu-se, com sucesso, por lá.
O irmão, que acabaria também radicado nos EUA, onde nos 80 foi lecionar composição, orquestração e regência na Princeton University, só registraria seu piano de arranjador e mestre em harmonias em Mário Castro Neves & Samba S.A. , de 1967, seu único disco brasileiro, reeditado aqui em 2001. O mesmo produtor da repescagem, Arnaldo DeSouteiro, agora lança por seu selo, JSR, um novo CD de Mário e seu grupo Samba S.A., On a clear bossa day. No baixo, o mesmo Gusmão de Os Modernos, que revelou-se no instrumento acompanhando de Jorge Ben a Wanda Sá e Flora Purim. E entre as composições, uma tirada do baú, a pré-histórica Mamadeira atonal, de 1957.
O esquema do grupo é o mesmo do disco com o Samba S.A., que chegou a ser disputado a peso de ouro nos sebos pelos europeus interessados no groove da bossa. Duas cantoras – antes Biba e Thaís, no disco novo, Ana Zinger (ex-Be Happy) e Ithamara Koorax – e o trio, completado pelo baterista desta, César Machado. A formação lembra o Brasil 66 de outro pianista, o niteroiense Sérgio Mendes, também instalado nos EUA após o desembarque no Carnegie Hall.
A diferença é que SM sempre direcionou-se para o mercado pop, confeccionando um padrão simplificado da bossa para grande consumo. Mário, pianista da linha oblíqua de Thelonious Monk, não faz concessões ao gosto mediano, enquanto as vozes femininas trabalham o uníssono, mas também a dissonância. As concepções de standards americanos e da bossa do grupo seguem sempre caminhos harmônicos inauditos.
O inesperado faz surpresas (quase sempre no compasso da bossa) tanto na balada Candy (Alex Kramer/ Mack David/ Joan Whitney), sucesso de Nat King Cole e de seu discípulo Ray Charles, quanto em On a clear day (Burton Lane/ Alan Jay Lerner), impressa na voz suspensa de Barbra Streisand. Os irmãos (George & Ira) Gershwin requebram no sincopado em Nice work if you can get it.
Mário também remodela com seu piano intervalado, repleto de acidentes sem prejuízo do suingue, totens daqui exportados, como Samba de verão (Marcos e Paulo Sérgio Valle) e Corcovado (Tom Jobim), esta invadida por modulações impensáveis. E mais o raro hino hedonista Muito à vontade (João Donato/ João Mello).
O lado autoral do líder predomina no CD, onde ele assina sete composições, incluindo Helena and I (dedicada a sua então esposa Helena Valadares, ex-de Fernando Sabino), de harmonia “manciniana”, como define o produtor DeSouteiro, uma das pérolas de Brazilian mood, gravado por Mário em Londres, nos 70, para a Decca e inédito aqui. Pena que todas as outras composições apenas instrumentais, como Mara my love, Lili, Samba S.A., My Rio, Tokyo waltz e a bachiana The whole mess, algumas cujas letras parecem saltar da pauta, tenham ficado na base do vocal “scateado” em “popopopaiás” e “uabapuás”.
Em compensação, o disco desvela um dos mais bem guardados segredos da pré-história da bossa, a parceria de Mário com Ronaldo Bôscoli, Mamadeira atonal, que antecedeu em dois anos o manifesto Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça. Em vertiginoso sincopado, a letra gaba-se: “Reclamem com o papai se eu nasci moderno assim/ perguntem pra mamãe se dissonante mora em mim/ tomei a mamadeira e fui ninado em atonal/ e o meu samba é embalado por um ritmo infernal”. Ouçam e comprovem.
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